domingo, 15 de dezembro de 2024

Ainda sobre futebol

Em 24 de abril de 2014, eu escrevi um texto aqui neste blog chamado Viva o Futebol!

Nele, trouxe uma visão sobre as relações masculinas forjadas desde a infância a partir da prática do futebol. O contato físico proibido para homens é bem-visto e frequente durante uma partida de futebol, de basquete, nas lutas. Apesar da violência de alguns embates corporais, eles trazem mais benefícios que escoriações.

Muita coisa mudou nestes últimos dez anos e as relações entre homens também mudou.

Temos visto mais homens com seus filhos, empurrando carrinhos de bebês, abraçando-se amigavelmente, beijando-se de modo fraterno ou amoroso, criando seus filhos sem as mães, responsabilizando-se por suas vidas escolares. Mas ainda há muito o que mudar.

Tem sido cada vez mais comum acompanhar famílias monoparentais tendo como adulto organizador um homem. Eles já não são chamados de ótimos pais por apenas levarem e trazerem suas/seus filha/os para a escola. Nós os solicitamos em nossas reuniões cada vez mais e os responsabilizamos pela educação da/os pequena/os. Quando um/a estudante se machuca, entramos em contato com pai ou mãe, sem priorizar qualquer dos dois.

O futebol perpassa muito da relação masculina. Para se realizar um jogo com tantos participantes (dez, doze ou 22 pessoas fora o banco de reserva e juízes), é necessário um consenso mínimo sobre as regras, mas, principalmente, é preciso que as pessoas queiram estar juntas. Os conflitos ocorridos antes do jogo ou gerados pelas disputas urgem ser sanadas para que a partida siga. Nesta dinâmica, muitas emoções são engolidas sem digestão e muita manipulação também ocorre.

As pessoas que escolhem os times costumam ser agradadas de diversas formas na escola para que haja envolvimento na equipe desejada ou mesmo para que se participe daquele jogo. Se os jogadores são sempre os mesmos, então machucar o oponente se torna proibitivo. Amanhã, aquele adversário poderá ser o colega de escola que escolhe os times e ele pode se lembrar da minha ação de hoje. Jogadas perigosas também são evitadas para não lesionar os amigos.

Ouvi um choro muito sentido outro dia e fui verificar a “ocorrência”. Um menino segurava um gelo logo abaixo da maçã do rosto silenciosamente. Mas quem estava chorando? O choro vinha do pátio e era bem alto. Um amigo inseparável do menino machucado chorava desesperadamente. Ele tinha chutado a bola, porém atingiu o rosto do amigo que tentava cabecear a bola. As crianças são pequenas, mas seus chutes são potentes, elas fazem escolinha de futebol e treinam com técnicas. As bolas da escola estão sempre indo parar no telhado ou fora da cerca. Temos que ir busca-las pelo menos uma vez a cada recreio, muitas bolas são perdidas porque nossa rua tem um leve declive, elas rolam para longe. Além disso, os meninos sabem que não gostamos de buscá-las e ralharemos, porque eles não podem resgatá-las por motivo de segurança. Estes meninos competem a cada recreio como se fosse uma final de campeonato. Converso com eles muitas vezes para que brinquem de futebol ao invés de disputarem tanto. Através do conflito aqui relatado, consegui mostrar a uma turma o quão sofrido pode ser a consequência de um lance disputado com mais força.

Temos meninas jogando também. Aos poucos elas foram se interessando e nós, profissionais da escola, impomos suas participações. Por vezes, alguém reclama que algum/a jogador/a atrapalha por não jogar bem. Sempre respondo que quem não joga bem precisa jogar mais do que os que já sabem jogar para melhorar.

As contusões são exageradas ou ignoradas dependendo do objetivo. Tivemos este ano um menininho de seis anos com grande habilidade. Chamávamo-lo de Neymarzinho porque ele caia sem que ninguém o encostasse, rolava no chão e chorava, impedindo a continuidade do jogo. Logo todos nós percebemos que era firula e ele parou de se atirar ao solo. Ele era muito catimbeiro. Este aqui já aprendeu que seu teatro mais atrapalha que ajuda o jogo e a diversão.

Relações sociais são feitas de sinceridades e também manipulações emocionais. Um de nossos estudantes apresenta traços de personalidade histérica. Perante qualquer ação que ocorresse fora de sua vontade, ele reclamava e chorava até que seu desejo fosse atendido. E todo recreio acabava com uma confusão para a professora resolver em sala de aula. Conversamos em grupo por duas vezes, eu fui bastante incisiva indicando a conduta reprovável e o impacto nocivo em todo grupo. A consequência do não aproveitamento do tempo de recreio por causa do conflito e as emoções esfrangalhadas posteriores. Com o apoio dos colegas, uma histeria descontrolada foi ajustada possibilitando o convívio e a adaptação. Depois de nossas intervenções no recreio e no grupo menor, os conflitos minguaram: não os presencio mais e não há mais queixas por parte da professora.

Homens adultos também participam das partidas e são muito cuidadosos evitando contusões nos pequenos. Nossos ex-estudantes também participam de jogos ao final do turno. Estas partidas nos mostram quão cuidadosos os homens podem ser com os pequenos. Assim, podemos mostrar-lhes seu potencial de bons cuidadores e a falácia do mito do amor materno.

Estou mostrando aqui como um jogo de preferência infantil pode ser utilizado como ferramenta de intervenção em grupos. Os jogos e brincadeiras são naturais na ação infantil. Através delas podemos promover o desenvolvimento de nossas crianças.

Nesta escola, o futebol é tão importante que as crianças pediam para as famílias virem buscá-las trinta minutos depois de terminado o turno. Isto prendia as trabalhadoras na escola para realizar a entrega da criança em segurança. Ouvi a diretora palestrando no pátio uma tarde e não consegui conter meu riso. Ela dizia da impossibilidade de as famílias aceitarem tal solicitação infantil porque as profissionais tinham horário, tinham famílias para cuidar e queriam voltar para seus lares e descansar de seu dia de trabalho. Que bronca!

Ao redor da quadra de futebol, as famílias permanecem ao final dos turnos matutino e vespertino. Enquanto esperam seus filhos jogarem mais uma partida ou escalarem as estruturas de concreto coloridas que compõem o espaço disponível, mães e pais se conhecem e trocam informações. O futebol possibilita o contato entre as pessoas, criando e fortalecendo laços. Trabalhar as famílias nesta escola é bastante fácil devido a esta característica. A comunidade escolar é ativa, participa dos eventos, reuniões, conselho escolar, fiscalizam e criticam nosso trabalho. Eu acredito que o futebol seja a liga desta escola.

Às vezes, eu digo para algumas famílias que atendo que elas nos dão muito trabalho, mas nós preferimos assim. Mesmo trabalhosas, elas são bastante participativas.

Altos e baixos

 Todas as idades têm suas vantagens. Depois de viver algumas décadas, é possível olhar para o próprio passado e estudar as possibilidades de ação e os efeitos das decisões tomadas. Nesta reflexão, podemos perceber momentos em que estamos financeiramente bem ou fisicamente mal, emocionalmente equilibrada/os, outras ocasiões em que nossa atuação laboral está decadente.

Enquanto enfrentamos problemas, tendemos a perceber mais atentamente os aspectos desafiadores das situações. Talvez por investirmos mais energia no que nos aflige, deixamos de perceber que há forças disponíveis em nossa própria personalidade que nos instrumentaliza para solucionar a questão. Há aspectos externos e internos em bons níveis de funcionamento que apoiam o enfrentamento das questões causadas por baixas.

Estes altos e baixos são característicos do desenvolvimento humano. Trata-se dos desafios comuns que possibilitam nosso crescimento constante. Várias são as teorias psicológicas que explicam e interpretam o fenômeno. Estudei profundamente a orientação teórica do Ciclo Vital que utiliza o metamodelo otimização seletiva com compensação (SOC). Transcreverei uma explicação sobre ele da minha dissertação de mestrado.

“A base do metamodelo é a crença de que o organismo humano seja capaz de empregar recursos para produzir resultados desenvolvimentais desejáveis enquanto minimiza os resultados indesejáveis (M. Baltes & Carstensen, 1998). Isto é, adaptação, que aqui se refere justamente ao comportamento ativo de mudança e melhoria dirigido pela vontade do indivíduo em domínios particulares. Tal concepção ultrapassa a ideia de mudança passiva e reativa do organismo respondendo a demandas contextuais. Esses resultados podem se dar nos diversos aspectos do desenvolvimento, ou seja, biológico, social ou psicológico (Marsiske e cols., 1995).

O metamodelo é denominado otimização seletiva com compensação e os três elementos que o nomeiam são os que o compõem. Os três serão explicados separadamente, mas funcionam conjuntamente, como uma unidade.

O primeiro elemento do metamodelo é a seleção. Trata-se de uma escolha, consciente ou inconsciente, de um domínio ou objetivo comportamental para a continuidade do desenvolvimento. Refere-se a restrições de envolvimento do próprio indivíduo em menos domínios de funcionamento como uma consequência de perdas em recursos pessoais e ambientais (M. Baltes & Carstensen, 1998). As fontes de seleção ontogenéticas são fundamentalmente quatro: a primeira é baseada no potencial genético. De acordo com essa primeira fonte, as diferenças genéticas continuam influenciando e limitando o desenvolvimento através da vida (Schulz & Hechhausen, 1996). Outra origem de seleção é a pressão cultural e individual para a especialização e adaptação dentro das trajetórias da vida. Está ligada aos eventos normativos graduados por idade e por história, envolvendo as expectativas e regras gerais que devem ser alcançados. A terceira, mais individualizada, refere-se à inadequação e diferenciação social. Mais ligada a fatores sociais como gênero, classe social e etnia, é denominada por Dannefer (em Marsiske e cols., 1995) como diferenciação sociogenética. A quarta fonte de pressão seletiva é relativa às influências não-normativas já citadas.

Os recursos para a seleção são finitos, quer sejam de ordem cognitiva, motivacional, biológica e temporal. Ao longo do ciclo de vida há um estreitamento das respostas adaptativas aos domínios nos quais seu funcionamento eficiente é esperado. A pressão para a seleção tende, então, a aumentar com o tempo de vida devido às limitações biológicas e ao aumento de vulnerabilidades (P. Baltes, 1997).

Como dito anteriormente, a seleção refere-se a uma escolha, mas sua origem nem sempre é o indivíduo. A cor dos olhos, manter-se vestido, exceto em certas culturas indígenas, e não comer carne de vaca na cultura hindu são exemplos de seleção que independem da opção pessoal. A abrangência de aplicação da seleção é extensa, incluindo múltiplos níveis e categorias de metas.

Marsiske e cols. (1995) e P. Baltes (1997) enfatizam que a seleção é direcionada à meta. A escolha por um comportamento particular de um domínio comportamental implica que todo o conjunto do domínio relacionado pode ser envolvido. É no nível individual que a conexão teórica entre a seleção e os objetivos explicitam seu aspecto psicológico. Isso porque é nesse nível que o desenvolvimento bem sucedido é altamente dependente do alcance de metas que as pessoas têm para si próprias.

(...)

Após a escolha do comportamento ou domínio, ocorre a otimização. Ela é o selo de autenticidade de qualquer concepção de desenvolvimento tradicional (P. Baltes, 1997). Esse elemento indica que o desenvolvimento é regulado interna e externamente em direção a altos níveis de eficácia e funcionamento desejável (Marsiske e cols., 1995 e P. Baltes, 1997). A otimização pode ser vista como um componente fundamental da progressão e manutenção do desenvolvimento.

Da mesma forma que a seleção, a otimização atuando em um comportamento ou domínio possibilita a aquisição, funcionamento ou aperfeiçoamento de outro comportamento ou domínio. A otimização tem como alvo melhorar ou manter as médias ou estratégias de obtenção de objetivos. Dos três componentes do modelo estudado, a otimização é o único que tem valor e direção a priori. Implica, por definição, em movimento dirigido ao crescimento e melhoria ou manutenção de outras adaptações bem-sucedidas. Seleção e compensação não apresentam direção pré-definida mesmo que a intenção primeira seja de melhor adaptação às condições experimentadas (Marsiske e cols., 1995). [Isto ocorre porque a melhor adaptação muitas vezes é a diminuição de um desempenho excelente.]

As fontes de influência para a otimização são muitas, por exemplo: evoluções filogenéticas, mudanças sócio-culturais, história individual. Como na seleção, as fontes de influência são classificadas em normativas por idade ou por história e não-normativas. Treinamento e prática, suporte ambiental e melhora motivacional são exemplos mais ligados a processos psicológicos de otimização (Marsiske e cols., 1995).

O terceiro componente do metamodelo é a compensação. Ela surge da necessidade ocasionada por limites e perdas na extensão da plasticidade, na capacidade de reserva e nas oportunidades contextuais. A compensação tem por base a ideia da aposta em um recurso interno ou externo para suprir uma falha em um domínio comportamental anteriormente efetivo. ‘A compensação (...) torna-se operativa quando uma capacidade comportamental ou uma habilidade específica são perdidas ou reduzidas abaixo no nível requerido para um funcionamento adequado.’ (M. Baltes & Carstensen, 1998, p. 218).[1]

A compensação diferencia-se da seleção, pois a direção, o domínio, a tarefa ou o objetivo é mantido, mas outros significados são procurados para compensar um comportamento deficiente de modo a manter ou otimizar uma função priorizada.

Assim, são fontes de compensação as limitações individuais e ambientais, podendo ser internas ou externas ao indivíduo. Tais limitações correspondem à finitude de recursos inerentes a sistemas orgânicos. Fatores como limites de oportunidades em tempo, espaço ou estrutura e restrições sociais ou genéticas formam um primeiro conjunto de fontes de compensação. O segundo conjunto de fontes é mais relacionado às perdas da velhice. Refere-se a todo o conjunto de estratégias de ajustamento com objetivo de minimizar o impacto de perdas e limitações. O principal exemplo de compensação é a plasticidade, mencionada anteriormente.

Comportamentos e instrumentos usados inicialmente para compensar alguma perda ou defeito podem ter suas funções modificadas e seus usos direcionados a diferentes aspectos. Marsiske e cols. (1995) exemplificam tal situação no uso de óculos na moda, um uso relativo a otimização na apresentação social. A evolução cultural constitui um grande exemplo de mudança na lógica de aplicação de determinado comportamento ou instrumento. A cultura é a resposta aos defeitos e impossibilidades que o frágil organismo humano impõe. Comportamentos modificados podem sofrer nova transformação em seu significado lógico. Como no exemplo de seleção externa, cultural e impostada dado anteriormente, o uso de roupas adquire a função de enfeite e de atrativo social [ou ainda de demarcação territorial].

Nesse sentido, os comportamentos e instrumentos a serem compensados podem fazer parte do repertório do indivíduo. A necessidade de uma nova orientação em seu uso ou sentido liga o processo de compensação ao de otimização. Marsiske e cols. (1995) vêem a compensação sempre integrada à otimização, pois também ocorre compensação quando otimiza-se um domínio comportamental em detrimento do sucesso de outro.

Em resumo, durante todo o desenvolvimento, o indivíduo está sempre envolvido com situações em que perde e ganha simultaneamente. Para lidar tanto com ganhos quanto com perdas, o indivíduo necessita adaptar-se às situações presentes. O metamodelo otimização seletiva com compensação (SOC) pode ser usado para explicar como o indivíduo se adapta às suas novas condições de perdas e ganhos.”[2]

 Crianças também enfrentam desafios. Aprender algo novo, por exemplo, pode ser conflituoso intelectual e emocionalmente. Perceber defeitos nos adultos de referência pode ser avassalador quando estamos em tenra idade. As dissonâncias cognitivas trazidas pelas informações novas são constantes nas primeiras fases da nossa vida. E precisamos nos adaptar às mudanças geradas constantemente, conforme o metamodelo SOC nos explica.

Ao constatar alterações na conduta ou nas respostas de um/a estudante, a/o professor/a deve considerar estes altos e baixos típicos do desenvolvimento humano. Estamos melhores em algo um dia e piores em outro aspecto ao mesmo tempo. Isto não se refere apenas a questões emocionais. Simplesmente não estamos tão bem no dia para realizar cálculos matemáticos. Está tudo bem quanto a isto.

Eu me lembro da minha professora de geografia no 2º grau. Conceição era uma professora muito observadora e carinhosa conosco. Me lembro que ela era bem jovem e acessível. Depois de uma nota bem baixa em uma prova, a professora Conceição me chamou para conversar. Ela me perguntou se estava acontecendo algo errado na minha vida, algo diferente em minha família. Eu expliquei que não havia estudado para sua prova, fui descuidada, nada preocupante. Minha nota foi realmente muito abaixo do que costumava ser meu desempenho médio. Por desatenção à agenda de geografia na escola, perdi muitos pontos e, mais importante, conhecimento. Conceição me ensinou muito mais que geografia com sua atitude gentil e cuidadosa: ela me mostrou que eu poderia pedir ajuda para meus professores, caso sentisse necessidade.

A psicologia escolar e a orientação educacional são esta ilha de atenção focada nas crianças e adolescentes nas escolas. Todo/as a/os estudantes matriculado/as merecem um olhar especial de nossa parte. Por isto, devemos ser acessíveis a cada um deles, mas principalmente à/os menos aberto/as.

Mesmo com nossa presença, a/os professore/as devem estar atentos a alterações nestes altos e baixos de desempenho de estudantes. Pessoas muito autoexigentes tendem a sofrer com pequenas flutuações. Nossa cultura ansiogênica[3] também produz sofrimento desnecessário.

Acerca destas alterações diárias em nosso percurso de vida, podemos auxiliar os processos de aposentadoria de nossas colegas de trabalho. O melhor desta análise e do prolongamento da existência individual é perceber que as possibilidades ainda existem após aposentadoria. Alertar à/o aposentanda/o que ele/a mesma/o apresenta características que possibilitam sua continuidade de envolvimento no meio social e quais são elas, poderá evitar depressões, adoecimento e morte. Pode parecer exagero falar em morte pós-aposentadoria, mas o estudo da Psicologia do Envelhecimento nos mostra a adequação desta preocupação por nossa parte.

Enfim, mostrar às crianças que está tudo bem em errar, que às vezes não estamos nos sentindo bem e/ou que não estamos com iguais desempenhos todos os dias pode minimizar impactos dilacerantes nas novas gerações. Exemplos do próprio comportamento por parte de professore/as podem ter grande potencial positivo na construção desta aceitação pelas próprias falhas por parte da/os estudantes.



[1] Tradução livre.

[2] Capone, Vicenza C. Satisfação de idosos em ambientes de vizinhança de duas regiões do Distrito Federal. Dissertação apresentada em 2001, pp 09 - 11.

[3] Ver Sobre Ansiedade: https://atuarpsicologiaescolar.blogspot.com/2024/11/sobre-ansiedade.html

A desistência em aprender ou da falha do sistema de ensino tradicional

 Neste último mês, realizei algumas observações em uma turma específica por causa de uma criança. A turma contém outros estudantes que apresentam dificuldades de aprendizagem associadas a questões emocionais e familiares preocupantes. Ampliei meu olhar para toda a turma para possibilitar a detecção de informações que pudessem auxiliar os demais estudantes.

Por muita sorte minha, a professora é apaixonada por sua profissão. Me parece uma intelectual e há potencial para ser pesquisadora. É muito interessada por questões sociais e engajada na militância em causas de minorias. É uma profissional atenta que demonstra boas leituras do ambiente social e de seus estudantes. Durante a aula, ela ofereceu um assunto novo e o anunciou classicamente: “eu gostaria que vocês prestassem bastante atenção agora, por favor!”.

O fenômeno que eu nunca tive observado saltou aos meus olhos: todos os estudantes (sim, eram todos meninos!) que eu acompanho por terem dificuldades de aprendizagem desta turma olharam para lados diferentes ao que a professora estava imediatamente à sua chamada de atenção. Os outros, participativos, engajados e com bons rendimentos, estavam com ela. Foi chocante para mim perceber tão nitidamente algo que deveria ter sido óbvio para mim. Depois, comentando sobre meu achado com a docente, ela me relatou que já havia percebido o fenômeno. Ela, entretanto, não poderia parar para chamá-los de forma insistente, pois a maioria dos estudantes estava respondendo ao chamado.

Em várias observações minhas nesta turma, percebi que os estudantes que acompanho com problemas de aprendizagem não se atentaram a explicações da professora. Estas crianças desistiram de sua busca pelo objeto do conhecimento? Será que elas falharam tantas vezes que sequer tentam?

Certamente, sua desatenção, quando algo novo lhes é anunciado, prejudica sua compreensão e, consequentemente, seu aprendizado. Algum mecanismo atua para que estas crianças se dispersem justamente quando lhes é pedido o foco.

A atenção tem sido muito estudada e treinada com o avanço das neurociências através de suas pesquisas e aplicações em consultório. Será que o desvio da atenção quando esta é solicitada em grupo já foi analisado? Já sabemos que a atenção é necessária para a aprendizagem. A mente humana não absorve informação caso não haja direcionamento de sentidos para a fonte. Independente da porta sensorial de entrada da novidade ou do estímulo, a atenção à sensação que traz o novo é essencial para sua apreensão.

A fixação da informação é compreendida de diversas formas conforme as teorias de aprendizagem mais conhecidas por nós no Brasil. Me refiro a Freud, Piaget, Vygotsky, Wallon, Althuser, Skinner. Professores relapsos já notaram que estudantes fazem a mesma conta (em período de dez minutos, por exemplo) várias vezes sem perceber que ela está anotada em seu caderno. E a aprendizagem se mostra fragilizada porque não há envolvimento real com o objeto do conhecimento. A repetição não se torna prática nem enfadonha. As crianças fazem as contas repetidamente sem perceberem que é desnessária ou sem perceberem o que, de fato, estão realizando.

Minha alternativa ao fenômeno quando ele ocorreu no foco da minha atenção foi fazer um contato tátil com a criança que estava ao meu alcance, trazendo-o para o presente e indicando a posição atual da professora fisicamente. Meu estudante estudado conseguiu avançar com o meu cutucão em seu braço. Minhas intervenções imediatas ao fenômeno têm sido bem-sucedidas. Entretanto, não posso garantir sua permanência. Acredito que é necessário pesquisar mais sobre a fuga da atenção para desvendar o funcionamento do mecanismo de dispersão. Outra crença minha é a de que são diversos os motivos que fazem a atenção saltar para longe e, provavelmente, cada uma das minhas crianças tem sua fonte de razões para se afastar do conhecimento.

Há pouco tempo, avaliei um estudante com dificuldade de aprendizagem acentuada. Este menino era muito sociável, tinha muitos amigos e sempre era convidado para brincadeiras com os demais tanto dentro de sala de aula, quanto no recreio ou na vizinhança de sua residência, conforme a família me relatou. Sua dispersão em aula era notória. Ele foi a criança mais desatenta que eu estudei. Ele não elaborava as atividades escolares em casa. Na escola, a primeira tarefa da rotina era a correção do dever de casa. Ele já sabia que a correção viria e não se dava ao trabalho de respondê-la anteriormente.

Eu realmente não acho que isto seja estúpido, mas muito pelo contrário, me pareceu até inteligente. Se o professor dará a resposta no início da aula seguinte, para que eu vou perder meu tempo de brincadeiras com vizinhos ou compartilhando ações com meu pai para desenvolvê-las fora da escola? Isto me parece mais com um desentendimento dos mecanismos escolares. Minhas professoras não conseguiram convercer esta criança sobre a importância da elaboração dos exercícios escolares em casa. Simples, não?

Este meu estudante passava a primeira hora da aula conversando com seus amigos e copiando as respostas do dever de casa em seu caderno de forma maquinal. Sem engajamento com o assunto, ele não aprendia nada com a “revisão” evocada na atividade proposta pelo professor. Todos os demais estudantes da turma já estavam em outra atividade e, por vezes, assistindo a aula sobre assuntos novos enquanto ele estava copiando o que era oferecido na lousa de forma atrasada.

Esta era a fonte de seu problema de aprendizagem. Expliquei-lhe que havia tempo bastante para brincadeira dentro de sala de aula. Ele poderia aprender, fazer as atividades e brincar com os demais se estivesse no ritmo estabelecido pelo professor. Para tanto, fiz um treino de atenção permanecendo ao seu lado desde o início da aula por alguns dias. A auto-regulação de suas atividades foi treinada e a dificuldade de aprendizagem foi superada. Ele precisou de um período de tempo para chegar no mesmo nível dos demais de sua turma porque já vinha perdendo conteúdo importante há mais de um ano letivo. Afinal de contas, o encaminhamento para a minha avaliação só acontecia quando o problema de aprendizagem já estava cristalizado. Com forte apoio da família acompanhando a resolução dos deveres de casa, as tarefas chegavam respondidas e ele conseguia seguir o professor. Depois de duas semanas, ele já realizava as tarefas de casa sem auxílio do pai. Este apenas o lembrava do momento das tarefas.

Muito de problemas de aprendizagem decorrem de defasagem de conhecimento curricular advindos da má compreensão do funcionamento escolar. Algo muito básico como entender que a professora anuncia questões de prova quando diz “prestem (muita) atenção ao que direi agora!” não é conhecido pelo corpo discente. Esta ignorância acontece inclusive na faculdade. Como algo tão básico pode passar desapercebido por tantas pessoas mesmo depois de tantos anos na escola? Eu já testei a reação de muitos estudantes com dificuldade de aprendizagem ao “revelar-lhes” isto. Suas sobrancelhas sobem em sinal de surpresa à novidade.

Esta chave tão óbvia está escondida. Por que será que as professoras não revelam o funcionamento dos métodos escolares para seus estudantes? Ou será que o demonstram e as crianças não conseguem perceber sua permanência através dos anos? Será que as professoras conseguem sistematizar estas ações repetitivas em si e em suas colegas de profissão?

Seja como for, o desentendimento do funcionamento escolar me parece fonte de desistência por parte de muitos de meus estudantes. Sua incompreensão deste mecanismo os afasta do conhecimento, provocando uma ruptura com o sistema educacional. Mesmo sendo duas coisas formalmente independentes, o funcionamento escolar e o conhecimento curricular dependem um do outro para se manifestarem. Às crianças é negado seu conhecimento aprofundado, portanto seu domínio é prejudicado. Somente alguns estudantes intuem e se adaptam ao sistema educacional. A estes, o sucesso escolar fica garantido. À/os demais, resta burlar o sistema através de colas, compras de trabalhos, conchavos e outras formas de burla.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Sopa de letrinhas

Acompanhando o dia-a-dia escolar, percebemos nitidamente a tendência a resolver questões pedagógicas com diagnósticos médicos e medicamentos correspondentes. Falta de atenção tem direcionamento para neurologistas. As professoras sabem inclusive os exames que serão solicitados pelo especialista. Também conhecem o nome do remédio que será indicado. Agitação motora, falha na compreensão de textos orais, atraso na alfabetização, excesso de saídas para uso de banheiro, falta de limites... Todos estes “sintomas” tem locais certos para obter solução.

Ultimamente, crianças voluntariosas também têm sido encaminhadas para consultórios médicos. Tratei disto recentemente, mas não com esta vertente, na postagem Mais Ainda Sobre Autismo[1].

A pedagogia costuma escapar da solução de problemas difíceis. Nós da psicologia fomos chamadas há muitos anos para sanar questões pedagógicas. Aceitamos a proposta e nos associamos ao campo do magistério. Entretanto, há soluções que são do processo de ensino e nenhuma outra ciência trará a solução para as professoras.

A atual “fuga” da responsabilidade sobre os próprios problemas da pedagogia foi denominada medicalização da infância. Ela teve a adesão da maioria das famílias com as quais convivo. E as famílias não aderentes são consideradas “difíceis”, descuidadas pelas professoras. Depois de tentarem todos os métodos para alcançar a aprendizagem do que oferecem para a/os pequena/os, as professoras buscam algum motivo fora de seu escopo para apontar. A própria incompetência e a pesquisa por novas formas de superar aquele problema laboral não costumam ser aventadas. Ressalvo aqui algumas professoras que têm perfil de pesquisadoras e são reconhecidas pelas colegas enquanto tal, pois costumam ter desempenho bem superior às demais.

Os vários encaminhamentos de crianças que não tem efetivamente nenhuma doença clínica gera diagnósticos que, obviamente, não solucionam o problema da dificuldade de aprendizagem. Este/as estudantes são levado/as à clínicas médicas, fonoaudiológicas, psicológicas em diferentes anos. Vários profissionais, diversas especialidades, diferentes épocas da vida da criança produzem uma multiplicidade de CIDs. Este conjunto de quadros sintomáticos de dificuldades de aprendizagem se agrupa em transtornos mentais e são referidos por siglas: DPAc[2], TDAH[3], TEA[4] (anteriormente indicado por TGD[5]), TOD[6], TC[7].

A CID é a Classificação Internacional de Doenças elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Cada doença classificada é categorizada e associada a letras do alfabeto. Especificidades são numeradas. A CID-11 foi lançada em junho de 2018 e deverá ser obedecida no Brasil por toda a classe médica a partir de janeiro de 2025 abandonando por completo a CID-10. A OMS determinou um período de adaptação porque a forma de codificação mudou bastante da CID-10 para a CID-11. Assim, entre 2018 e 2014, foi possível usar as duas classificações.

Quando recebemos um conjunto de diagnósticos ou um laudo médico com vários CIDs para uma criança, eu chamo de sopa de letrinhas. Há estudantes que apresentam quatro das siglas indicadas acima (por exemplo, DPAc, TOD, TDAH, TEA). Quando isto acontece, temos um patente caso de ignorância sobre o caso. Ou a situação da criança não está sendo informada corretamente à/o profissional, ou o caso é solucionável na instituição educacional com um pouco mais de atenção por parte da equipe escolar.

Uma sopa de letrinhas é uma característica que chama minha atenção. Me parece um caso de desistência de algum/a envolvido/a. Eu digo isto porque a CID-11 cataloga mais de 55.000 códigos para doenças[8]. Compreendo que um médico não conheça toda a CID-11 a ponto de fazer um diagnóstico 100% correto, mas associar vários códigos para caracterizar um diagnóstico me parece bastante cômodo.

Em minha formação profissional, aprendi que nosso atendimento é mais valioso para nossa/o cliente que o nome possível para o mal que a/o aflige. As exigências da medicina impedem seus práticos de agir desta forma. Acredito que isto ocorra principalmente devido à comunicação da área com outras instâncias legais envolvendo trabalho, processos judiciais, previdência social, por exemplo. Médico/as merecem realmente grande reconhecimento por sua prática laboral. Sua responsabilidade e necessidade de estudo e pesquisa são grandes e constantes.

Em minha experiência nas escolas, tenho conseguido auxiliar a superação do fenômeno da sopa de letrinhas através de um relatório ao atual profissional que acompanha a criança em questão no sentido de focalizar seu olhar e definir o melhor código CID para o quadro, se for o caso de um número para auxiliar a atenção para aquela criança.

O relatório de um/a psicóloga/o escolar é necessariamente mais aprofundado e abrangente que o da/o colega clínico porque estamos no ambiente da/o estudante. Nós não somos um/a profissional estranho ao seu convívio. Observações em sala de aula e recreio podem ser realizadas sem que o comportamento infantil se modifique totalmente. Além disso, as demais crianças que frequentam a escola com aquela têm acesso livre a nós. Acrescentamos ainda o acesso a todas a/os profissionais escolares e entes familiares que dispomos. Esta naturalização nos proporciona visão privilegiada do/a pequeno/a. Eis a possibilidade de solução para a sopa de letrinhas em nossas mãos, inclusive para indicar que não há necessidade de CID alguma.



[2] Distúrbio do processamento auditivo (o “c” refere-se a central, mas saiu da nomenclatura devido ao pleonasmo caracterizado por processamento já ser considerado central, no cérebro, conforme o entendimento científico).

[3] Transtorno de déficit de atenção com/sem hiperatividade.

[4] Transtorno do espectro autista.

[5] Transtorno global do desenvolvimento.

[6] Transtorno opositor desafiador.

[7] Transtorno de conduta.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Mais ainda sobre autismo

Temos observado um crescimento de casos de autismo na escola onde trabalho nos últimos cinco anos. Há muitas famílias que migram para Brasília, principalmente se um dos pais é militar, buscando atendimento diferenciado que oferecemos em nossas escolas públicas. Esta é uma das razões para o crescimento de casos em nossas escolas.

Outro fator que se pode indicar como causa para tal aumento é a visão sensível de profissionais para diagnosticar o quadro clínico típico do autismo. Profissionais da saúde e da educação têm realizado cursos e convivido com mais crianças autistas. A experiência e a curiosidade de profissionais podem funcionar como o facho de luz de uma lanterna facilitando a identificação de crianças com este quadro.

Talvez o uso de medicação como coadjuvante para o controle emocional de pessoas no espectro do autismo também tenha provocado maior atenção de especialistas médico/as ao diagnóstico. Sabemos que há um incentivo de grandes laboratórios para médicos que prescrevem seus produtos. Para realizar a prescrição medicamentosa, é necessário sinalizar algum diagnóstico compatível.

O Movimento do Orgulho Autista foi muito bem sucedido em diminuir a resistência de familiares de crianças no espectro autista frente ao diagnóstico. Ultimamente, familiares sugerem tal diagnóstico em reuniões comigo. Além do movimento, terapias aplicadas com sucesso têm oferecido mais esperança de adaptação social às pessoas que convivem com autistas. Também há mais informações da população em geral e marcadores visuais para sinalizar as deficiências ocultas como as típicas de autistas[1]. Para se adaptar ao atendimento de pessoas com autismo, setores do comércio e serviço buscaram treinamento de pessoal. Durante estes treinamentos, houve auto-identificação, redução de preconceitos, busca de informações aprofundadas, promoção de compaixão e consequente acolhimento por parte de pessoas que não convivem com autismo.

O crescimento de diagnósticos tardios também aumentou a divulgação das características do transtorno, além da conscientização de pessoas que não atuam diretamente nas áreas de saúde e educação. Ao relatarem seus sintomas e se revelarem autistas para amiga/os e colegas de trabalho e/ou cursos, estes adolescentes e adulto/as promovem a ampliação do alcance de informações acerca do transtorno do espectro autista. Assim, mais pessoas têm acesso a informação provocando o acréscimo no volume de identificações de pessoas com TEA. Perceber indivíduos adaptados à sociedade, muitos já engajados no mercado de trabalho, suavisa o impacto do diagnóstico nas famílias de crianças com suspeita de autismo. Refletir sobre os efeitos do diagnóstico nas relações sociais da família e suas expectativas para o futuro daquele ente se torna mais suave e menos angustiante.

Acrescenta-se a isto, todo o avanço legal conquistado pelo movimento do orgulho autista nos últimos dez anos:

Lei nº 12.764/2012 – institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.

Lei 14.626/2023 – estende o direito ao atendimento prioritário para pessoas com TEA. 

Lei 13.861/2019 – estabelece a inclusão de perguntas sobre o autismo no censo. 

Lei 7.611/2011 – dispõe sobre a educação especial e o atendimento educacional especializado. 

Lei 10.098/2000 – estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade. 

A instituição a qual pertenço oferece atendimento diferenciado a estudantes no espectro autista, com deficiências ou transtornos funcionais (TDAH, TPAc, dislexia entre outros). Um destes atendimentos é a redução de estudantes por turma conforme a quantidade de estudantes com necessidades educacionais especiais (ENEE). A quantidade de pessoas com autismo por turma tem crescido tanto que as delimitações normativas não têm sido respeitadas pela/os nossa/os planejadore/as.

O atendimento diferenciado para cada caso de transtorno funcional específico em sala de aula pela professora torna o planejamento de aula exigente. E a prática docente têm ficado mais desafiadora. Uma de minhas turmas tem duas crianças no espectro autista, uma com síndrome de Down e duas com transtornos funcionais diferentes. A turma tem dezoito estudantes e recebe apoio de outro profissional da escola, além de apoio voluntário de pessoas externas à instituição escolar. Este apoio busca suplantar as dificuldades enfrentadas por possíveis choques de reações entre as crianças.

Eu não imagino como seria administrar uma turma como esta em níveis educacionais mais avançado, com estudantes adolescentes, por exemplo. É preocupante também que as pessoas com TEA progredirão para o ensino fundamental e médio com diversos professores por turma. O ensino fundamental séries finais (do 6º ao 9º ano) funciona com nove matérias diferentes. O ensino médio (do 1º ao 3º ano) conta com onze professore/as. Se o curso for técnico, a quantidade de matérias aumenta ainda mais (dezenove em turno integral).

As professoras com as quais trabalho fazem um perfil comportamental de cada criança no prazo de duas semanas aproximadamente. Elas permanecem 25 horas semanais com a mesma turma de quinze a trinta estudantes. As turmas com autistas tem redução de estudantes para que a professora disponibilize seu tempo de atendimento individualizado com as crianças que demandam mais ações em prol de sua aprendizagem e segurança em sala de aula. Quanto tempo um/a professor/a que leciona para trezentos estudantes precisará para estudar, mapear, planejar-se considerando a/os estudantes com TEA que estão em suas turmas?

Se as pessoas com autismo estão sendo diagnosticadas com maior facilidade, elas conviverão entre si também em quantidade crescente. Pessoas com TEA se desorganizam emocionalmente por motivos nem sempre identificáveis e muitas vezes demoram para se reorganizarem de modo a prosseguir com suas atividades cotidianas. Este é um dos sintomas comuns do quadro característico de TEA. Estas pessoas conviverão entre si além de compartilharem espaços com outros indivíduos provocativos ou desrespeitosos. Uma pessoa autista nem sempre consegue controlar o próprio comportamento de modo a não disparar crises em outras com TEA. E estudantes neurotípico/as podem atingir emocionalmente autistas com palavras, gestos ou atos por vários motivos, inclusive pura e simplesmente atrapalhar a aula.

Penso que há dois problemas que precisam ser analisados a partir da situação que descrevo neste texto. O primeiro é indicado pelo assombro que se tem com o quantitativo tão aumentado de autistas ao nosso redor. Eles estavam o tempo todo convivendo sem que especialistas se dessem conta? Ou alguma coisa em nossa cultura foi modificada a ponto de provocar o autismo? Eu acredito que os indivíduos com TEA do nível de suporte 1 conviviam passivamente apesar de seu sofrimento e engajamento para se adaptar à/os demais. Pessoas com TEA em nível de suporte 2 e 3 eram diagnosticadas porque seu comportamento é muito destacado. Assim, a resposta para estas duas perguntas propostas é sim.

O segundo problema refere-se à fidedignidade do diagnóstico oferecido pelas classes médica e psicológica. Será que todos estes diagnósticos estão corretos? Todas as pessoas indicadas com TEA têm, realmente, características que satisfazem este diagnóstico conforme a Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) ou o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria? Ouso responder negativamente a esta questão.

Para se considerar uma pessoa com TEA é necessário que seu comportamento típico se enquadre em três campos: linguagem, relacionamento social, estereotipias. Mesmo contemplando a ampliação do arcabouço do autismo através do conceito espectro que o DSM- V trouxe, desvios ou distúrbios nestas três áreas devem estar presentes no comportamento de quem recebe o diagnóstico.

Eu tenho encontrado crianças e adultos que não apresentam comportamentos condizentes com o quadro e estão diagnosticada/os como TEA. Esta situação me parece bastante preocupante. Isto porque indivíduos com autismo precisam de apoio para alcançar uma vida plena, necessitam cuidados especiais em sua educação e por parte de quem com ele/as convivem ao longo de sua vida. Por ser assim, estas pessoas têm mais direitos do que as demais que não enfrentam suas dificuldades. Estes direitos envolvem os atendimentos prioritários e diferenciados mencionados no início deste texto, por exemplo. E incluem também acesso facilitado a empregos.

Sabemos que grandes populações e vantagens provocam intenções de fraudes. O acesso a melhores serviços, supressão de filas, atendimentos prioritários em diversos âmbitos, mais atenção, delicadeza e cuidado, melhores escolas, empregos mais rentáveis são elementos altamente desejáveis. Todos estes direitos de pessoas autistas têm provocado indivíduos neurotípicos em direção a fraudar serviços e concursos públicos. Atento ao volume de ocorrências neste sentido, o Conselho Federal de Psicologia acionou nossa classe profissional a tomar algumas precauções adicionais na entrega de relatórios de avaliação e decisão de diagnósticos.

Além disso, há que se considerar os riscos de um diagnóstico preferencial. É possível percebermos uma tendência em direção a um diagnóstico na classe médica. Nós, leigos em medicina, não comentamos mais quando voltamos de um atendimento em pronto-socorro com diagnóstico de virose. A variedade de sintomas que corresponde a virose é tão grande que a possibilidade de erro é pequeno. Entretanto, o erro de diagnóstico por um/a médico/a pode ter efeitos devastadores. E, no caso em discussão, gera consequências sociais que não me parecem estar sendo consideradas.

O diagnóstico de TEA é realizado através de relato de pessoas que convivem com uma criança ou pelo autorelato, se o/a “paciente” é adolescente ou adulto/a. Considerando as informações amplamente difundidas acerca das características de autismo, uma pessoa inteligente pode facilmente induzir um/a médico/a a indicar este diagnóstico. Para evitar que esta falha ocorra, a classe médica tem recorrido a profissionais em avaliação neuropsicológica. Através de testes psicométricos, entrevistas, observações em consultórios, psicóloga/os têm oferecido suas análises que, por sua vez, embasam o direcionamento e definição diagnóstica. Se visualizarmos rapidamente que o “sintoma” isolamento social pode ser classificado como personalidade esquizóide, esquizotípica, casos de esquizofrenia, fobia social, hikikomori por exemplo; podemos pensar em quantos erros temos produzido por meras tendências.

Outro problema, bastante grave em meu entendimento, relaciona-se ao financiamento oferecido pela indústria farmacêutica para a elaboração do DSM-V. Este financiamento foi denunciado internacionalmente e duramente criticado durante os trabalhos da quinta edição do manual a ponto de uma revisão já ter sido publicada em 2023 (o DSM-V é de 2013). O crescimento de casos com o diagnóstico em estudo cresceu sensivelmente após a publicação do DSM-V. E estes casos tem sido medicados com drogas que podem gerar dependência e efeitos colaterais preocupantes. A medicalização de nossas crianças é algo bastante sério, terá efeitos em seu desenvolvimento, em sua aprendizagem, em seu modo de se relacionar com pares. Tenho acompanhado perturbações comportamentais a partir de interações medicamentosas e/ou de efeitos colaterais de medicamentos administrados em estudante autista de sete anos. Esta criança ainda não apresenta linguagem comunicativa e demonstra um nível de sofrimento que angustia a todos que estão ao seu redor. A experimentação medicamentosa pode gerar grande sofrimento ao invés de sanar problemas. Retornar ao estado anterior à medicação deletéria tem demorado mais do que o desejável. Esta experimentação é delicadíssima se considerarmos que o funcionamento cerebral de uma criança autista é diferente do funcionamento de uma criança neurotípica.

Concluindo esta análise, é importante indicar o aumento do volume de procura por consultas neurológicas e neuropsicológicas nos últimos cinco anos. Eu não tenho este levantamento de dados, mas acompanho o crescimento nos valores das consultas e na frequência com que ouço as famílias buscando por tais serviços. Vejo com bastante crítica as pessoas serem encaminhadas para neurologista ao invés de psiquiatras, como deveria ser o caso já que não há exames que detectem os marcadores físicos de autismo.

Saímos há três anos de uma pandemia devastadora. Os efeitos da covid-19 ainda estão sendo sentidas nas vidas de todos nós. As ausências sentidas, as sequelas físicas que a doenças nos deixou, o receio de reincidivas somam-se à nossa defasagem social. Ainda não nos recuperamos do efeito da quebra de convívio físico entre cidadã/os, as suscetibilidades geradas pelo isolamento, as dificuldades de compaixão. Estar consigo mesmo durante a última pandemia teve efeito deletério em algumas pessoas mais do que em outras? Este fator está sendo analisado pela classe médica? Todas as pessoas tiveram dificuldades para retornar aos desafios diários que nos impõe o convívio social. Será que todos nós já superamos estes óbices? Será que pessoas menos sociáveis estão sendo diagnosticadas adequadamente? Ou terá surgido um novo quadro nosológico?

[1] cordão de girassol é um acessório utilizado como símbolo de conscientização e apoio a pessoas autistas e com deficiências ocultas. Inspirado na beleza e resiliência dos girassóis, esse cordão representa solidariedade e compreensão. Foi instituído pela lei nº 14.624 de 17 de julho de 2023. Fonte:https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/07/19/cordao-com-desenhos-de-girassol-para-deficiencias-vira-simbolo-nacional, acessado em 28/11/2024.


domingo, 24 de novembro de 2024

Sobre ansiedade

 Eu sou correntista do Banco do Brasil. Nos primeiros meses deste ano, me deparei com uma fotografia de Gilberto Gil na imagem de abertura do aplicativo para celulares deste banco. A imagem era divinal: Gil muito elegante com uma roupa clara segurando um lírio de caule longo como uma lança. Aquela imagem foi muito estudada e a fotografia, esmerada. Era a propaganda de uma apresentação do grande artista da música nacional patrocinada por um dos produtos do banco. Trata-se da última série de espetáculos que Gilberto Gil fará.

Por ser quem é, o artista já atrairia milhares de espectadores. Com a informação de que será a última apresentação, certamente a busca de ingressos seria grande. As datas programadas para os espetáculos por todo país foram divulgadas nas semanas subsequentes: seriam no ano seguinte, em 2025.

Então teremos que planejar um evento[1] com mais de um ano de antecedência?

As propagandas no aplicativo do próprio banco tiveram grande alcance, já que este banco é o maior do nosso imenso país. Como o Tesouro Nacional é movimentado através dele, seu tamanho é bastante vultoso. A importância desta empresa nacional é significativa e conhecida. Com uma foto tão artística e bem produzida, mesmo quem não é fã de Gil ficaria com vontade de assistir ao espetáculo.

E por que esta divulgação acontece tão precocemente?

Em minha cidade, a apresentação acontecerá em uma imensa arena: nosso estádio de futebol reformado e ampliado para os jogos da Copa do Mundo de 2014. Como Brasília não conta com times de futebol importantes para o cenário nacional, nosso estádio passou a demandar custos de manutenção ao governo do Distrito Federal ao invés de gerar recursos aos cofres públicos. Ele foi arrendado e passou a ser usado para eventos culturais tanto em sua área interna quando perimetral.

Devido ao tamanho da arena, os lugares para apresentação de Gil foram mapeados e distribuídos com diferentes preços. Os lugares mais distantes são as arquibancadas superiores. De lá, mal se vê o artista. É necessária a instalação de telões que possibilitem a visualização do que acontece no palco. Assim, a pessoa vai ao espetáculo e assiste à transmissão ao vivo por vídeo com segundos de atraso. Esta localização tem o nome de Andar com Fé. Mais próxima do que a arquibancada, estão as cadeiras inferiores denominadas A Paz. A pista na frente do palco tem o nome de Aquele Abraço. Quanto mais perto do palco, mais caro o ingresso. Quem conhece minimamente o artista, sabe como estes nomes são significativos em sua carreira. São nomes de músicas que fizeram grande sucesso. Deve ter sido difícil escolher somente três músicas. Mas há, ainda, uma área mais próxima ao palco. Trata-se da parte frontal da pista na frente do palco. Seria interessante se esta área, quase no gargarejo, recebesse o nome de Palco, outro grande sucesso de Gil. Mas esta área foi nominada Pista Premium Banco do Brasil.

Que choque!

Esta última área teve suas vendas abertas em agosto de 2024 exclusivamente para clientes do Ourocard. Os ingressos tinham, inicialmente, os valores correspondentes às cadeiras inferiores. Quantos clientes novos a empresa Ourocard conseguiu com esta programação? Com a venda antecipad(íssim)a, creio que a empresa não precisou desembolsar nada. Os ingressos da Pista Premium se esgotaram rapidamente. A propaganda linda, divulgada na própria mão de possíveis interessado/as, preços reduzidos para compra antecipada e mais ainda para clientes do banco geraram expectativa de uma chance imperdível. Eu não tenho informações de quando as entradas para a Pista Premium foram esgotadas.

O patrocínio que assegurará a turnê em questão é do Ourocard, o cartão do Banco do Brasil. É provável que a venda destes ingressos de forma tão precoce tenha garantido o valor necessário para a produção do evento sem necessidade de movimentar valores patrimoniais da empresa.

Temos uma engenhosidade sagaz aqui, não é mesmo?

E este planejamento que gera expectativa, que faz os fãs de Gil quererem aproveitar uma grande oportunidade gera ansiedade.

Este formato de grande negócio para vendedores não foi criado para a arte. Vimos este mesmo estilo de vendas criar comoção, euforia e compras compulsivas pela empresa estadunidense Apple. Seus produtos são incrivelmente caros. Sua qualidade, entretanto, supera os produtos similares, garantem o/as consumidore/as. Seus programas e aplicativos são protegidos de invasões de piratas de internet, mas alguns precisam ainda ser pagos mensalmente, conforme me informou uma colega de trabalho que tem um computador portátil desta marca.

O que eu trouxe aqui para nossa análise conjunta não é meramente uma descrição comercial de um evento. O que eu trago é um modo de operação que gera doença psíquica para grandes contingentes populacionais. E adoecimento psíquico é um de nossos temas.

A partir da expectativa de realizar uma compra excepcional, gera-se ansiedade, competição, consumismo, compulsão, vigilância constante... Quais são os efeitos dessas emoções e comportamentos quando vivenciados permanentemente por uma população inteira? A tensão gerada por possibilidade de grandes oportunidades destrói o corpo de operadores de bolsa de valores. Este estudo é antigo e seus resultados já são de domínio público. Estes trabalhadores recebem comissões vultosas por seus ganhos na administração de compra e venda de ações empresariais, mas deverão administrar os impactos desta vida terrível poucos anos depois de ingressarem nesta área. Será que podemos comparar o mercado de ações com o novo sistema de propaganda de produtos comerciais?

Temos a ansiedade como uma emoção que vem aumentando seu contágio e atingindo pessoas cada vez mais jovens. Viver sem ansiedade me parece como estar um pouco fora do mundo. Quem tem mais de trinta anos pode verificar em sua própria existência o aumento de nosso ritmo de vida. Nosso tempo foi reduzido, nossas obrigações aumentaram, há muitas oportunidades que não podem ser perdidas, temos muitos eventos para frequentar, cursos imprescindíveis, necessidades urgentes para satisfazer.

De onde tudo isto veio?

Suponho que este estado de coisas foi gerado por quem ganha financeiramente com ele. Nenhuma indústria lucrou mais com a pandemia de covid-19 e a estratégia de isolamento físico gerada por ela que a farmacêutica. Eu não vou citar dados estatísticos para argumentar sobre isto, mas indicarei o crescimento de casas comerciais farmacêuticas em nossas ruas. Em minha cidade, o comércio se estende por ruas com 200 metros de extensão. Há ruas com três ou quatro drogarias. Notem que este comércio foi o único que visualmente cresceu durante a pandemia.

Para além de emoções nocivas controladas por psicotrópicos, a sensação de insegurança que a ansiedade traz, também pode vender outros produtos. Seguros de diversos tipos, previdência privada, sistemas de câmeras, automóveis individuais, condomínios verticais e horizontais com mais empregados, armas, plano de saúde, academias de ginástica, personal trainners, terapias convencionais e alternativas, médicos especialistas em transtornos mentais, profissionais treinados para recuperar traumas, psicóloga/os.

Precisamos estar atenta/os para manipulações de grandes contingentes populacionais e a geração de adoecimento. A quem estamos servindo ao recuperar pessoas para se manterem neste sistema de vida?

Entre 2018 e 19, um amigo querido começou a dizer ao nosso grupo de amigas psicólogas que a profissão do futuro era a nossa. Ele não pensou isto sozinho nem imaginou isto sem fundamento. E ser psicóloga neste panorama não parece algo proveitoso. Assim como se gera ansiedade através de bens culturais de massa e se vende ansiolíticos, há chance da responsabilidade pela ansiedade incontinente e crescente da população ser direcionada para nossa categoria profissional.

Os consultórios psiquiátricos estão lotados. As receitas de ansiolíticos e moderadores de humor são associadas a psicoterapia. Entretanto, minhas/meus colegas de faculdade não estão com seus consultórios cheios, muito pelo contrário. Os valores pagos aos profissionais de saúde pelos planos de saúde são baixíssimos. Conversei com uma colega e amiga esta semana e ela me falou das atuais dificuldades do consultório clínico psicoterápico. Em nossa conversa, ela concluiu que os problemas da/os clientes estão crônicos, intensos, desafiadores e de difícil superação. As demandas aumentaram, mas mudaram.

Quais são as nossas técnicas científicas para apoiar nossa/os clientes individualmente ou em pequenos grupos de modo a enfrentarem as doenças psíquicas e seus sofrimentos gerados pela cultura perniciosa a qual pertencemos?

Será que técnicas desenvolvidas há setenta anos promoverão recuperação ou manutenção de saúde psíquica neste panorama tão adoecedor?

É possível reduzir o impacto do adoecimento que percebemos em nossa/os clientes através da contextualização histórico-cultural atualizada?

Quais são os instrumentos da nossa ciência para enfrentarmos os desafios que nos são impostos?



[1] E não podemos dizer que seja um evento pessoal como um casamento, formatura ou aniversário de cinquenta anos.

sábado, 16 de novembro de 2024

Organização vital

 Muitas vezes reclamamos de elementos naturais sem nos darmos conta da grande importância que têm para a constituição humana, para nossa organização material ou psíquica. A nossa queda depois de adultos nos mostra o quanto o solo é duro. Cimento, asfalto, cerâmica, granito que revestem o chão onde pisamos nas ruas, em nossas casas e edifícios. O chão é tão duro que nos ofende. Tropeços, quedas, escoriações são riscos constantes quando estamos em movimento, mas aumentam quando há argila, buracos, poças d’água, obstáculos e, porque não dizer, bagunça. Embora não pensemos nele, a não ser que nos provoque algum risco, o solo nos dá suporte constante. E só há risco de queda porque há gravidade.

Esta força física estabelece organização em nossa vida. Sua importância é tão grande que sequer pensamos nela. Sem a gravidade, a vida como a conhecemos talvez não posse possível. A formação de rios, lagos, mares e chuva depende da força gravitacional. Uma experiência de física em estação espacial realizada por astronauta da agência espacial canadense (CSA/ASC) exemplifica isto surpreendentemente[1]. Sem gravidade, a água perde seu peso e se mantém flutuando ligada a si mesma ou a qualquer objeto com o qual entre em contato. Ela permanece. A água não cai, não corre. Assim, fenômenos comuns em nosso planeta não aconteceriam sem a força da gravidade. A vida aconteceria de forma bastante diferente da que presenciamos e conhecemos. É a gravidade que nos possibilita andar com segurança, manter os objetos onde estão, organizá-los, higienizarmo-nos e ao ambiente. Podemos reclamar de feridas ocasionadas por acidentes devidos à força da gravidade, mas como seria não termos esta força física nos organizando?

Reclamamos de muitas coisas constantes e, por vezes, fundamentais em nossas vidas sem nos atentarmos para o papel essencial que representam. Reclamamos de nossas mães, mas a maioria de nós mal pode pensar em como seria nossa vida sem suas presenças. Reclamamos de nossos síndicos e nem imaginamos quanto trabalho têm para administrar nosso bem imóvel ou nosso lar. Reclamamos de nossas professoras, porém o que dizemos da organização do conhecimento que elas planejam para nos apresentar, fazendo-o de forma que a complexidade chegue paulatinamente, facilitando nosso aprendizado?

Freud, em seu simples e fácil O Mal-Estar na Civilização[2], mostra-nos que há três grandes fontes de insatisfação humana. A primeira delas é a própria natureza com seus perigos de todas os reinos, seja animal, vegetal, mineral ou monera. Chuvas torrenciais, terremotos, descargas elétricas, alimentos venenosos, feras, aracnídeos peçonhentos ou insetos que podem nos trazer vírus, protozoários ou bactérias são alguns perigos que nos rondam permanentemente e dos quais necessitamos nos precaver constantemente. A segunda fonte de insatisfação humana é a fragilidade de nossa constituição física. Para enfrentar os perigos meramente exemplificativos listados acima, precisamos desenvolver artefatos artificiais. Nossas casas, tecnologias de extinção de animais sinantrópicos, vacinas são exemplos de aplicação de conhecimento em substituição da típica ausência de proteção física humana. E, para encerrar esta listinha de Freud, há a maior de todas as insatisfações: a advinda do contato com outro ser humano. As nossas relações sociais são fonte de grandes dissabores. E Freud ainda nos diz que esta dor nos parece maior porque deveríamos ter controle sobre ela. Enquanto humanos, podemos estabelecer regras que conduziriam nossas condutas de forma a evitar malefícios uns aos outros.[3]

Estudando direito há alguns anos atrás, percebi que estas normas de conduta existem e têm exatamente esta função, ou seja, regular nossas ações de modo a reduzirmos efeitos nocivos em nossos próximos e, por que não dizer, distantes[4]. Essas normas são as leis. Entretanto, há quem diga que as regras existem para serem quebradas. Além de não sabermos todas as leis existentes em nossa cidade (imagine em nosso país), as regras mais comuns e conhecidas – as de convivência entre vizinhos ou as de trânsito – são comumente rompidas.

E reclamamos de quem convive conosco. Quanto mais perto de nós, mais nos queixamos. As ações e omissões de quem amamos, queremos perto, nos preocupamos são as que mais nos ofendem. E, na maioria das vezes, não pensamos como seria estar no mundo sem esta(s) pessoa(s) em nossas vidas.

É justamente a convivência entre as pessoas que promove, com maior intensidade e efetividade, o nosso desenvolvimento. Nenhum ambiente, informação, animal, máquina ou programa dito inteligente se aproxima da experiência promovedora de crescimento que outro ser humano proporciona.

Discutindo com famílias na escola em vários momentos e oportunidades neste ano de 2024, concluímos que o melhor concorrente para um aparelho de celular seus jogos e vídeos automaticamente alternados é outro ser humano. As crianças se mantém unidas, tranquilas, se regulam mutuamente e por um período longo. Sim, elas brigam, mas, se as instruirmos adequadamente, conseguem se resolver com autonomia rapidamente.

Talvez devamos interferir menos na organização própria de crianças em uma escola. Oferecer temas, materiais e cuidar para não se machucarem pode ser mais produtivo que mantê-las em ordem, quietas, silenciosas, “atentas”, olhando para nós.

Além disso, todo ser humano é promotor de desenvolvimento para os que estão ao seu redor. Pensemos no que podemos aprender com aquele “ser humaninho”, parodiando Mustafary do talentoso Marco Luque, para evitarmos os sofrimentos que resistir e reclamar dele nos causa.



[1] Para ver a experiência com água na internet, busque por https://youtu.be/wmoVG7OZkGc, acessado em 16/11/2024.

[2] Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1930/1996.

[3] Capone, Vicenza C. Satisfação de idosos em ambientes de vizinhança de duas regiões do DF. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Brasília – DF, 2001.

[4] Muitas de nossas ações, formas de pensar e consumo atingem comunidades muito distantes de nós fisicamente. Os sons que promovemos com nossos deslocamentos pelo mundo afetam a vida marinha, por exemplo. Mesmo que não voemos constantemente ou viajemos de navio, nossas compras ou equipamentos que necessitamos para algumas de nossas atividades comuns chegam até nós por estas vias. Ouça o programa de áudio Ter que levantar a voz da Rádio Novelo Apresenta. Muitos de nossos artefatos metálicos advém de extrações em minas ou garimpos em terras indígenas. E a presença da atividade extrativista é muito impactante nestas comunidades e suas regiões.

https://open.spotify.com/episode/2Qv464pipvbRgJT8Wu30Sp?si=Oo4w61tKRUCX7kOKnP-84Q&t=902, acessado em 16/11/2024.

Sobre o impacto de nossas máquinas no interior dos continentes, acesse também o belíssimo e emocionante programa de áudio A Casa dos Espíritos no episódio Caixas pretas também da Rádio Novelo Apresenta.

https://open.spotify.com/episode/0rPDzb3ZMDAlVoX7qbQqHO?si=sYKnopOtRESfPvuqKNTjvQ, acessado em 19/11/2024.