sexta-feira, 8 de junho de 2012

Doenças Escolares


Vemos uma profusão de novas “doenças” afetando nossos alunos. As dificuldades de aprendizagem agora têm subtipos em interseção com diversas deficiências. Assim, temos a deficiência no processamento auditivo, no processamento visual, deficiência de atenção com ou sem hiperatividade. Essa última também pode vir isolada. Dislexia, dislalia, disgrafia, discalculia...

Lembro que essas “doenças” são culturais, ou seja, são decorrentes do nosso modo de operar na sociedade e das ferramentas que esta cultura nos disponibiliza. É por isto que são detectadas na fase escolar, quando os humanos tem o seu primeiro grande momento de socialização. Pensamos assim porque durante o convívio exclusivamente familiar é possível evitar situações impactantes para as crianças.

A escola tem por função o desenvolvimento do ser em sua potencialidade. Para tanto é necessário desenvolver ações básicas a todos os seres para atuar nesta sociedade. Além disso, na escola devemos detectar quais são as propensões de cada criança e possibilitar meios e instruções para propiciar seu crescimento.

Quais são as ações básicas necessárias para uma inclusão mínima em nossa sociedade? Como todos sabem, não sou especialista em educação, sou psicóloga escolar. A partir de minha experiência enquanto socializada e participante da comunidade escolar acredito que são atividades básicas na cidade o controle corporal, o controle emocional, o raciocínio lógico, a leitura, a escrita, a percepção ambiental, o respeito a regras simples e de convivência, o cálculo mental simples.

Essas habilidades estão previstas no currículo básico ditado pelo Ministério da Educação. Sendo assim, as escolas têm o dever de fazê-lo cumprir. Nunca li um documento afirmando isto, mas acredito que o aumento do ensino fundamental em um ano vai de encontro a esta ideia. Quero dizer que as crianças agora entram obrigatoriamente na escola aos seis anos para propiciar seu desenvolvimento pré-escolar.

Lembro aos leitores que a obrigação pela educação das crianças é da família e da escola. Este dever é constitucional e há instrumentos legais para garantir o direito das crianças à educação de qualidade. Pensando nisso e verificando o fracasso escolar, passamos a avaliar o desempenho da instituição escola.

A criança apresenta desenvolvimento motor adequado para o aprendizado da escrita aos sete anos. Os teóricos do desenvolvimento humano apontam esta idade como uma divisão muito provavelmente por isto. A partir desta idade é esperado e exigido um comportamento diferenciado das crianças. O período anterior a este é chamado pré-escolar.

Pois bem, a pré-escola existe para desenvolver habilidades anteriores a escrita e preparar o corpo para os conhecimentos que virão. A principal atividade na pré-escola é a psicomotricidade. A pedagogia propõe o ensino de conceitos básicos como baixo/alto, grande/pequeno, frente/costas, identificação de cores, de formas geométricas antes da entrada na escola. Assim sendo, entendo que estes conceitos sejam conteúdo da pré-escola.

Estes conceitos são importantes porque a nossa sociedade é organizada através deles. Os sinais de trânsito, a disposição de barracas ou gôndolas nos mercados, os banheiros, os cardápios de restaurantes, as instruções de uso de aparelhos usam estas premissas. Todos os nossos textos começam na esquerda encima e seguem para a direita abaixo.

Falar disso em um texto técnico parece tolice. Porém, esta organização é social, não inata. Estas ideias estão de tal maneira arraigadas em nós, que as tratamos aprioristicamente. Luria já derrubou esta hipótese de organização universal através de seu clássico estudo de classificação com adultos em fazendas coletivas russas. As crianças precisam ser ensinadas sobre isto. Algumas aprendem rapidamente sem intervenção direta dos adultos. Mas a garantia deste aprendizado é dever da escola, mais precisamente da pré-escola e, na ausência desta, no primeiro ano do ensino fundamental de nove anos.

Porém, isto não tem sido feito. E, pior, exige-se das crianças o que a escola deveria estar disponibilizando a elas! Ouço professoras de primeiro ano reclamarem de crianças que não sabem o nome das cores ou das formas geométricas. Sei de casos de crianças encaminhadas para o serviço especializado de psicopedagogia por apresentarem problemas de psicomotricidade aos cinco e seis anos de idade. Crianças que não sabem que organizamos textos da esquerda para a direita e de cima para baixo terão dificuldade em copiar textos da lousa. Seus cadernos serão bagunçados. Crianças que não tiveram oportunidade de correr, saltar, trepar, escorregar terão dificuldades em conter seus movimentos em espaços físicos restritos.

Aproveitamos para alertar que o momento do recreio escolar não é um descanso concedido às profissionais, mas a oportunidade da criança se soltar, possibilitando um novo período de restrição de movimentos em seguida. Este tempo na sala de aula que reduz a mobilidade natural do animal que somos é violento para a criança. Nosso corpo docente desconhece isso e reclama intensamente da movimentação de crianças pequenas quando deveriam utilizar o movimento em sua proposta de atividade pedagógica. Nossas professoras questionam como se a mobilidade fosse oposta à nossa capacidade de aprendizagem.

Discutindo o caso de um aluno de seis anos com uma professora de primeiro ano, ouvi que a criança não sabia usar o livro. Questionei se não seria cedo para usar livro, se não haveriam outras atividades anteriores a esta. A docente me respondeu que, se há livro, ele deve ser usado. Considerei a resposta extremamente superficial e cômoda, mas não segui meu questionamento por receio de melindrar minha relação com a outra profissional. Assisto crianças de quatro e cinco anos aprendendo a escrever seu próprio nome. Não vejo estas mesmas crianças terem oportunidade de manipular diferentes materiais, com texturas variadas de forma a estimular seus sentidos e possibilidade de movimentação. Assim, a educação corporal vai sendo negada aos alunos. Ao questionar tal atitude nos jardins de infância, os gestores me respondem que há exigências de instâncias superiores que envolvem a escrita já nesta idade. Então, aqui eu pergunto quais são os objetivos dos pedagogos que cobram descabidamente o desenvolvimento precoce destas crianças?

Aqui tivemos o objetivo de questionar o que a instituição escolar provoca ignorando etapas preliminares do desenvolvimento humano e avançando em direção à aquisição da escrita. Ao delegar a aquisição de conceitos básicos à natureza, a escola produz diversas doenças em seus alunos.

Nossa função enquanto psicóloga/os continua sendo provocar o desenvolvimento dos nossos clientes. Aqui incluo, com bastante veemência, nossas professoras. Devemos achar um caminho entre nossa obrigação e o melindre para efetivamente garantirmos o direito dos nossos alunos à melhor educação. Efetivamente creio que ordens superiores teriam melhor efeito do que o nosso trabalho pontual, mas o desconhecimento do objetivo pedagógico superior (como anteriormente exposto) nos impõe a manutenção do nosso atual estado. Acrescento, entretanto, que nossa situação é restritiva, porém a atuação é possível e imprescindível, principalmente pelo privilégio que temos de estar dentro das escolas.