Muitas vezes reclamamos de elementos naturais sem nos darmos conta da grande importância que têm para a constituição humana, para nossa organização material ou psíquica. A nossa queda depois de adultos nos mostra o quanto o solo é duro. Cimento, asfalto, cerâmica, granito que revestem o chão onde pisamos nas ruas, em nossas casas e edifícios. O chão é tão duro que nos ofende. Tropeços, quedas, escoriações são riscos constantes quando estamos em movimento, mas aumentam quando há argila, buracos, poças d’água, obstáculos e, porque não dizer, bagunça. Embora não pensemos nele, a não ser que nos provoque algum risco, o solo nos dá suporte constante. E só há risco de queda porque há gravidade.
Esta força física estabelece organização em nossa vida. Sua
importância é tão grande que sequer pensamos nela. Sem a gravidade, a vida como
a conhecemos talvez não posse possível. A formação de rios, lagos, mares e chuva
depende da força gravitacional. Uma experiência de física em estação espacial realizada
por astronauta da agência espacial canadense (CSA/ASC) exemplifica isto surpreendentemente[1]. Sem gravidade, a água
perde seu peso e se mantém flutuando ligada a si mesma ou a qualquer objeto com
o qual entre em contato. Ela permanece. A água não cai, não corre. Assim, fenômenos
comuns em nosso planeta não aconteceriam sem a força da gravidade. A vida
aconteceria de forma bastante diferente da que presenciamos e conhecemos. É a
gravidade que nos possibilita andar com segurança, manter os objetos onde
estão, organizá-los, higienizarmo-nos e ao ambiente. Podemos reclamar de
feridas ocasionadas por acidentes devidos à força da gravidade, mas como seria
não termos esta força física nos organizando?
Reclamamos de muitas coisas constantes e, por vezes,
fundamentais em nossas vidas sem nos atentarmos para o papel essencial que
representam. Reclamamos de nossas mães, mas a maioria de nós mal pode pensar em
como seria nossa vida sem suas presenças. Reclamamos de nossos síndicos e nem
imaginamos quanto trabalho têm para administrar nosso bem imóvel ou nosso lar.
Reclamamos de nossas professoras, porém o que dizemos da organização do
conhecimento que elas planejam para nos apresentar, fazendo-o de forma que a
complexidade chegue paulatinamente, facilitando nosso aprendizado?
Freud, em seu simples e fácil O Mal-Estar na Civilização[2], mostra-nos que há três
grandes fontes de insatisfação humana. A primeira delas é a própria natureza
com seus perigos de todas os reinos, seja animal, vegetal, mineral ou monera.
Chuvas torrenciais, terremotos, descargas elétricas, alimentos venenosos, feras,
aracnídeos peçonhentos ou insetos que podem nos trazer vírus, protozoários ou
bactérias são alguns perigos que nos rondam permanentemente e dos quais necessitamos
nos precaver constantemente. A segunda fonte de insatisfação humana é a
fragilidade de nossa constituição física. Para enfrentar os perigos meramente
exemplificativos listados acima, precisamos desenvolver artefatos artificiais.
Nossas casas, tecnologias de extinção de animais sinantrópicos, vacinas são
exemplos de aplicação de conhecimento em substituição da típica ausência de
proteção física humana. E, para encerrar esta listinha de Freud, há a maior de
todas as insatisfações: a advinda do contato com outro ser humano. As nossas
relações sociais são fonte de grandes dissabores. E Freud ainda nos diz que
esta dor nos parece maior porque deveríamos ter controle sobre ela. Enquanto
humanos, podemos estabelecer regras que conduziriam nossas condutas de forma a
evitar malefícios uns aos outros.[3]
Estudando direito há alguns anos atrás, percebi que estas
normas de conduta existem e têm exatamente esta função, ou seja, regular nossas
ações de modo a reduzirmos efeitos nocivos em nossos próximos e, por que não
dizer, distantes[4].
Essas normas são as leis. Entretanto, há quem diga que as regras existem para serem
quebradas. Além de não sabermos todas as leis existentes em nossa cidade
(imagine em nosso país), as regras mais comuns e conhecidas – as de convivência
entre vizinhos ou as de trânsito – são comumente rompidas.
E reclamamos de quem convive conosco. Quanto mais perto de
nós, mais nos queixamos. As ações e omissões de quem amamos, queremos perto,
nos preocupamos são as que mais nos ofendem. E, na maioria das vezes, não
pensamos como seria estar no mundo sem esta(s) pessoa(s) em nossas vidas.
É justamente a convivência entre as pessoas que promove, com
maior intensidade e efetividade, o nosso desenvolvimento. Nenhum ambiente,
informação, animal, máquina ou programa dito inteligente se aproxima da
experiência promovedora de crescimento que outro ser humano proporciona.
Discutindo com famílias na escola em vários momentos e oportunidades
neste ano de 2024, concluímos que o melhor concorrente para um aparelho de
celular seus jogos e vídeos automaticamente alternados é outro ser humano. As crianças se mantém unidas, tranquilas, se regulam
mutuamente e por um período longo. Sim, elas brigam, mas, se as instruirmos adequadamente,
conseguem se resolver com autonomia rapidamente.
Talvez devamos interferir menos na organização própria de crianças
em uma escola. Oferecer temas, materiais e cuidar para não se machucarem pode
ser mais produtivo que mantê-las em ordem, quietas, silenciosas, “atentas”,
olhando para nós.
Além disso, todo ser humano é promotor de desenvolvimento para
os que estão ao seu redor. Pensemos no que podemos aprender com aquele “ser humaninho”,
parodiando Mustafary do talentoso Marco Luque, para evitarmos os sofrimentos
que resistir e reclamar dele nos causa.
[1]
Para ver a experiência com água na internet, busque por https://youtu.be/wmoVG7OZkGc,
acessado em 16/11/2024.
[2] Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1930/1996.
[3] Capone, Vicenza C. Satisfação de idosos em ambientes de vizinhança de duas regiões do DF. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Brasília – DF, 2001.
[4]
Muitas de nossas ações, formas de pensar e consumo atingem comunidades muito
distantes de nós fisicamente. Os sons que promovemos com nossos deslocamentos
pelo mundo afetam a vida marinha, por exemplo. Mesmo que não voemos
constantemente ou viajemos de navio, nossas compras ou equipamentos que
necessitamos para algumas de nossas atividades comuns chegam até nós por estas
vias. Ouça o programa de áudio Ter que levantar a voz da Rádio Novelo
Apresenta. Muitos de nossos artefatos metálicos advém de extrações em minas ou
garimpos em terras indígenas. E a presença da atividade extrativista é muito impactante
nestas comunidades e suas regiões.
https://open.spotify.com/episode/2Qv464pipvbRgJT8Wu30Sp?si=Oo4w61tKRUCX7kOKnP-84Q&t=902,
acessado em 16/11/2024.
Sobre o impacto de nossas máquinas no interior dos
continentes, acesse também o belíssimo e emocionante programa de áudio A Casa
dos Espíritos no episódio Caixas pretas também da Rádio Novelo
Apresenta.
https://open.spotify.com/episode/0rPDzb3ZMDAlVoX7qbQqHO?si=sYKnopOtRESfPvuqKNTjvQ,
acessado em 19/11/2024.
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