sábado, 16 de novembro de 2024

Organização vital

 Muitas vezes reclamamos de elementos naturais sem nos darmos conta da grande importância que têm para a constituição humana, para nossa organização material ou psíquica. A nossa queda depois de adultos nos mostra o quanto o solo é duro. Cimento, asfalto, cerâmica, granito que revestem o chão onde pisamos nas ruas, em nossas casas e edifícios. O chão é tão duro que nos ofende. Tropeços, quedas, escoriações são riscos constantes quando estamos em movimento, mas aumentam quando há argila, buracos, poças d’água, obstáculos e, porque não dizer, bagunça. Embora não pensemos nele, a não ser que nos provoque algum risco, o solo nos dá suporte constante. E só há risco de queda porque há gravidade.

Esta força física estabelece organização em nossa vida. Sua importância é tão grande que sequer pensamos nela. Sem a gravidade, a vida como a conhecemos talvez não posse possível. A formação de rios, lagos, mares e chuva depende da força gravitacional. Uma experiência de física em estação espacial realizada por astronauta da agência espacial canadense (CSA/ASC) exemplifica isto surpreendentemente[1]. Sem gravidade, a água perde seu peso e se mantém flutuando ligada a si mesma ou a qualquer objeto com o qual entre em contato. Ela permanece. A água não cai, não corre. Assim, fenômenos comuns em nosso planeta não aconteceriam sem a força da gravidade. A vida aconteceria de forma bastante diferente da que presenciamos e conhecemos. É a gravidade que nos possibilita andar com segurança, manter os objetos onde estão, organizá-los, higienizarmo-nos e ao ambiente. Podemos reclamar de feridas ocasionadas por acidentes devidos à força da gravidade, mas como seria não termos esta força física nos organizando?

Reclamamos de muitas coisas constantes e, por vezes, fundamentais em nossas vidas sem nos atentarmos para o papel essencial que representam. Reclamamos de nossas mães, mas a maioria de nós mal pode pensar em como seria nossa vida sem suas presenças. Reclamamos de nossos síndicos e nem imaginamos quanto trabalho têm para administrar nosso bem imóvel ou nosso lar. Reclamamos de nossas professoras, porém o que dizemos da organização do conhecimento que elas planejam para nos apresentar, fazendo-o de forma que a complexidade chegue paulatinamente, facilitando nosso aprendizado?

Freud, em seu simples e fácil O Mal-Estar na Civilização[2], mostra-nos que há três grandes fontes de insatisfação humana. A primeira delas é a própria natureza com seus perigos de todas os reinos, seja animal, vegetal, mineral ou monera. Chuvas torrenciais, terremotos, descargas elétricas, alimentos venenosos, feras, aracnídeos peçonhentos ou insetos que podem nos trazer vírus, protozoários ou bactérias são alguns perigos que nos rondam permanentemente e dos quais necessitamos nos precaver constantemente. A segunda fonte de insatisfação humana é a fragilidade de nossa constituição física. Para enfrentar os perigos meramente exemplificativos listados acima, precisamos desenvolver artefatos artificiais. Nossas casas, tecnologias de extinção de animais sinantrópicos, vacinas são exemplos de aplicação de conhecimento em substituição da típica ausência de proteção física humana. E, para encerrar esta listinha de Freud, há a maior de todas as insatisfações: a advinda do contato com outro ser humano. As nossas relações sociais são fonte de grandes dissabores. E Freud ainda nos diz que esta dor nos parece maior porque deveríamos ter controle sobre ela. Enquanto humanos, podemos estabelecer regras que conduziriam nossas condutas de forma a evitar malefícios uns aos outros.[3]

Estudando direito há alguns anos atrás, percebi que estas normas de conduta existem e têm exatamente esta função, ou seja, regular nossas ações de modo a reduzirmos efeitos nocivos em nossos próximos e, por que não dizer, distantes[4]. Essas normas são as leis. Entretanto, há quem diga que as regras existem para serem quebradas. Além de não sabermos todas as leis existentes em nossa cidade (imagine em nosso país), as regras mais comuns e conhecidas – as de convivência entre vizinhos ou as de trânsito – são comumente rompidas.

E reclamamos de quem convive conosco. Quanto mais perto de nós, mais nos queixamos. As ações e omissões de quem amamos, queremos perto, nos preocupamos são as que mais nos ofendem. E, na maioria das vezes, não pensamos como seria estar no mundo sem esta(s) pessoa(s) em nossas vidas.

É justamente a convivência entre as pessoas que promove, com maior intensidade e efetividade, o nosso desenvolvimento. Nenhum ambiente, informação, animal, máquina ou programa dito inteligente se aproxima da experiência promovedora de crescimento que outro ser humano proporciona.

Discutindo com famílias na escola em vários momentos e oportunidades neste ano de 2024, concluímos que o melhor concorrente para um aparelho de celular seus jogos e vídeos automaticamente alternados é outro ser humano. As crianças se mantém unidas, tranquilas, se regulam mutuamente e por um período longo. Sim, elas brigam, mas, se as instruirmos adequadamente, conseguem se resolver com autonomia rapidamente.

Talvez devamos interferir menos na organização própria de crianças em uma escola. Oferecer temas, materiais e cuidar para não se machucarem pode ser mais produtivo que mantê-las em ordem, quietas, silenciosas, “atentas”, olhando para nós.

Além disso, todo ser humano é promotor de desenvolvimento para os que estão ao seu redor. Pensemos no que podemos aprender com aquele “ser humaninho”, parodiando Mustafary do talentoso Marco Luque, para evitarmos os sofrimentos que resistir e reclamar dele nos causa.



[1] Para ver a experiência com água na internet, busque por https://youtu.be/wmoVG7OZkGc, acessado em 16/11/2024.

[2] Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1930/1996.

[3] Capone, Vicenza C. Satisfação de idosos em ambientes de vizinhança de duas regiões do DF. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Brasília – DF, 2001.

[4] Muitas de nossas ações, formas de pensar e consumo atingem comunidades muito distantes de nós fisicamente. Os sons que promovemos com nossos deslocamentos pelo mundo afetam a vida marinha, por exemplo. Mesmo que não voemos constantemente ou viajemos de navio, nossas compras ou equipamentos que necessitamos para algumas de nossas atividades comuns chegam até nós por estas vias. Ouça o programa de áudio Ter que levantar a voz da Rádio Novelo Apresenta. Muitos de nossos artefatos metálicos advém de extrações em minas ou garimpos em terras indígenas. E a presença da atividade extrativista é muito impactante nestas comunidades e suas regiões.

https://open.spotify.com/episode/2Qv464pipvbRgJT8Wu30Sp?si=Oo4w61tKRUCX7kOKnP-84Q&t=902, acessado em 16/11/2024.

Sobre o impacto de nossas máquinas no interior dos continentes, acesse também o belíssimo e emocionante programa de áudio A Casa dos Espíritos no episódio Caixas pretas também da Rádio Novelo Apresenta.

https://open.spotify.com/episode/0rPDzb3ZMDAlVoX7qbQqHO?si=sYKnopOtRESfPvuqKNTjvQ, acessado em 19/11/2024.

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