sábado, 16 de novembro de 2024

Sobre erros e homens

Um amigo ontem me falou do impedimento em errar imposto a nós pela cultura ocidental. Meu amigo discursou sobre a real questão em não se pegar o caminho mais rápido em um trajeto, por exemplo. O objetivo está assegurado, não há pressa. Por que a agonia em se pegar o caminho mais rápido sempre? Qual a problema em errar?

O erro produz alternativas ao pensamento, pode alterar objetivos, leva a novas conjecturas, proporciona novas percepções (muito visíveis no caso de um caminho, como no exemplo que meu amigo me deu). O erro em si não representa um problema aqui. A questão está no sujeito que erra. Quais são os impactos personológicos sobre este sujeito?

Em nossa reunião de ontem, comprei-me um livro cuja temática me instiga teoricamente[1] há vinte e cinco anos, a saber, o homem e a masculinidade[2]. Trata-se de O Homem Não Existe[3] de Lívia Gonçalves Diniz e comecei a lê-lo assim que pude. O primeiro capítulo traz a questão da impotência e sua centralidade no órgão genital masculino. Lívia nos leva a compreender, através do confronto com a Psicanálise, que a ereção peniana condensa imageticamente o poder, o potencial humano, não apenas o masculino.

Entendo que o potencial de uma pessoa não é reduzido por objetivos frustrados. Ao buscar alcançar uma fruta ainda em sua árvore, qualquer um pode falhar. Isto não diminui sua capacidade de subir em árvores. Tomar um caminho mais longo para se chegar a algum lugar ou enfrentar um engarrafamento devido à escolha tomada no planejamento, não é sinal de impossibilidade de se chegar ao local desejado. Então por qual motivo ficamos tão abatida/os quando não conseguimos algo que sabemos ser possível? Por que uma derrota nos abala a segurança?

Fui acionada por uma mãe a atender seu filho que sofreu bulliyng por parte dos colegas e foi desacreditado pelo corpo docente em escola anterior. A criança é inteligente, perspicaz e demonstra raciocínio verbal muito rápido. Suas relações sociais são afetadas por esta velocidade, pois ele não tem paciência de explicar seu pensamento e os demais permanecem em desentendimento. Observando-o em sala de aula, percebi que confia muito em seu aparelho mental e não faz uso de papel. Sem este apoio, o menino tem resultados pífios em matemática, apesar de sua inteligência. Na ocasião de minha observação, ele fazia contas e as apagava. Os resultados eram certos, mas sua memória de trabalho era sobrecarregada por muitas informações. Misturando-as, ele errava a conta final. Intuo que a repetição de tal situação fez com que esta criança também desacreditasse de seu potencial. Uma semana depois de fazer uma intervenção com esta criança mostrando-lhe a importância do uso do papel, a professora me informou que seu comportamento e desempenho nas aulas de matemática haviam mudado.

Em várias observações minhas nesta turma, percebi que os estudantes que acompanho com problemas de aprendizagem não se atentaram a explicações da professora. Estas crianças desistiram de sua busca pelo objeto do conhecimento? Será que elas falharam tantas vezes que sequer tentam?

A emoção de meu amigo, sempre tão tranquilo, ao falar de erro também me instigou. Logo que meus amigos são meus objetos de estudo, posta a minha curiosidade perante ao fenômeno homem, ele é um dos meus sujeitos de pesquisa[5]. O entendimento da ideia que ele me trazia naquela conversa me emocionou e ele, homem que é, ficou constrangido e não soube como lidar com minhas lágrimas. Tal atitude interrompeu nossa discussão. A inabilidade em lidar com o choro também é um incômodo que nos abate como se houvesse uma forma fixa e correta no manejo emocional.

Eu e meu amigo temos como assunto comum recorrente o racismo, o colonialismo, as formas com que estes sistemas se apóiam, integram e operam mutuamente. O colonialismo nos mostra que nossos modos de existir são moldados por outras pessoas às quais sequer temos acesso. Nossas cidades, casas, roupas, se as usamos ou não e o quanto de nossa pele é exposta, nossas relações, nossos pensamentos, nossos sonhos e desejos são forjados por pessoas que não conhecemos. Aqui temos um paradigma acerca da liberdade. Estamos presos e não percebemos. E o meu amigo falou sobre a falta de liberdade expressa no impedimento ao erro.

A imposição da forma de ser colonialista acontece desconsiderando o clima local, as características do solo, as alterações comuns que as estações do ano trazem. Tomemos a vestimenta formal masculina: trata-se de um uniforme, como nos alerta Naomi Wolf em seu celebrado O Mito da Beleza[6]. Homens “respeitáveis” usam terno o ano inteiro em todas as regiões do globo às quais a cultura ocidental dominou. O que um homem sofre sensorialmente por estar de terno em um dia tropical de 30°C[7]? Faz parte do uniforme uma camiseta branca interna ao conjunto. O suor certamente virá porque o corpo está excessivamente coberto. A camiseta será de algodão para segurar o suor (algo desprezível culturalmente ligado à ideia de esforço físico, sujeira e mau odor) impedindo-o de chegar à visão geral. Será que o controle da temperatura corporal foi pensado ao se incluir esta peça ao conjunto? Digo isto porque conforto não me parece coerente com a imposição de fazer uma pessoa usar terno nos trópicos ou na zona equatorial. Ainda não perguntei a nenhum dos meus sujeitos, mas acredito que a camiseta de algodão tem uma função adicional de refrescar o constante calor percebido pelo indivíduo interno ao terno. Gravata, paletó, calça, meia, sapato fechado... Esta vestimenta é tão sem sentido quanto anti-ecológica.

Entretanto não usar terno é um problema, um erro, pode até ser uma gafe. E os homens se submetem para não serem acusados, constrangidos, destratados. Para pertencerem.

Racionalmente falando, o erro é usar terno. Assim como temer e evitar, ao custo de possível adoecimento psíquico, os erros típicos da natureza humana. Por que não podemos errar várias vezes? Essas ordens taxativas oprimem nossas ações e nos tornam menos do que poderíamos ser. “Errar é humano, mas errar duas vezes é burrice.” Temos obrigatoriamente que ser inteligentes o tempo todo. Temos que lembrar de tudo e de todos em todas e quaisquer situações. Temos que estar sempre bem-humorados e dispostos e disponíveis no nosso ambiente de trabalho.

Todos nós sofremos com estas exigências constantes. Devemos, todavia, fazer aqui um recorte de gênero. O patriarcado, para atingir seus objetivos de reserva dos postos de liderança aos homens brancos adultos, constrói a ideia de que comportamentos e situações ligadas (por ele) ao feminino são proibidas nas relações sociais e de trabalho, ambientes ligados ao masculino. Emoções lacrimosas (tristeza, espanto, frustração ou alegria, por exemplo), enganos, desculpas são ações “típicas” ou “esperadas” em mulheres. Aos homens sérios e competentes, aqueles nos quais podemos confiar, não podem apresentar tais comportamentos[8]. E este aprisionamento não se abranda quando os homens estão sozinhos. Mesmo sem ninguém por perto, um homem não se permite agir de forma a contrariar os preceitos de masculinidade.

Este estado de coisas incoerentes e opressoras produz adoecimento em diversos aspectos.

Quando será que os homens começam a sentir esta pressão quanto às suas ações?

Temos estatísticas assustadoras relativas às queixas escolares em meninos e há artigos científicos sérios mostrando isto. Eu trabalho com problemas de aprendizagem há vinte e quatro anos. Há mais de dez anos, eu e minhas colegas, em congressos e fora deles, discutimos a prevalência de problemas de aprendizagem em meninos. Chegamos a pensar que prestamos mais atenção a eles em detrimento das questões das meninas. Creio que podemos analisar aqui ambas as proposições, posto que vêm da mesma fonte.

Eu tive um estudante cuja dificuldade de aprendizagem desafiou profissionais competentes. Nós não conseguimos compreender o que fazia aquela criança não aprender, apesar de oferecermos diversos métodos e materiais, buscarmos seus temas de interesse, afastarmo-lo de registros escritos. Mas nós não testamos seu medo de errar. Nós percebemos que muitas de nossas crianças tem esse impedimento. Minhas professoras trazem a questão do erro em suas aulas, discutimos ao longo do ano em reuniões individuais ou coletivas de professoras e em conselhos de classe sobre a resistência que as crianças têm em errar. E a cantilena das professoras é a mesma “não se aprende sem errar”. Elas afirmam isso em suas aulas, não brigam com a/os pequena/os quando cometem algum engano, sugerem alterações, solicitam explicações gentilmente sobre a forma de solucionar as tarefas propostas para que a própria criança perceba seu erro e o corrija.

Quando eu chorei perante a revelação que meu amigo me trouxe, sentia o quão impactante são as regras de aceitação nesta cultura. Minha sensação era “até isso nos tomam?”. E a proposta dele é “vou errar sim”.

E agora, à luz deste pensamento auto-autorizativo e do maravilhoso ensaio de Ligia, penso no impacto negativo da interdição ao erro sobre nossas crianças do gênero masculino. E vou além: errar perante uma professora pode ser suave como se enganar defronte à própria mãe? O que acontece se o professor for um homem? Assim como meu amigo compartilha seu clamor pelo direito ao erro perante uma amiga com quem compartilha discussões teóricas ou com sua esposa, terá ele força o bastante para exercer este (desejado) direito diante de seu chefe ou seus colegas de trabalho ou mesmo seus clientes?

Temos aqui um problema típico da nossa ciência em conjunção com a sociologia. A psicanálise ensina a nos atentarmos ao repetitivo. Por que será que eu nunca me aprofundei no estudo do erro? Será mesmo que os erros das meninas não são tão problemáticos? As mulheres são liberadas para errar porque se espera isto de seu gênero?

Sabemos que o que eu trago aqui são elocubrações do meu cotidiano de práxis psicológica. Eu faço pesquisa-ação em minha atuação profissional, mas não tenho como pesquisar cada uma das questões suscitadas pelo meu cotidiano. Penso em doutorado, mas quando reflito em permanecer com apenas uma questão por quatro (ou mais) anos, me parece tão empobrecido e custoso que desisto. E a questão mais constante é mesmo sobre meninos.

Tenho o entendimento da fragilidade masculina. Digo isto a alguns homens para perceber suas reações e eles me parecem não ter refletido sobre o tema, não conseguir me responder ou argumentar, não há engajamento para que eu chegue a alguma conclusão mesmo rasa sobre esta fragilidade.

Ainda sobre o tema aqui explorado, qual o impacto do impedimento ao erro para homens no rebaixamento da auto-estima masculina?



[1] No sentido científico da palavra.

[2] Como sabemos, este tema não traz curiosidade apenas a mim (ainda bem). E chegamos a pensar em masculinidades, com “s”. E já temos um avanço.

[3] Diniz, Ligia G. O homem não existe: masculinidade, desejo e ficção. Rio de Janeiro: 2024. 

[5] Esta pesquisa é exploratória, observacional e inquiridora, portanto não há delineamento metodológico.

[6] Wolf, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

[7] Já falei sobre este assunto neste blog.

[8] Portar um terno elegante e bem cortado traz confiança. Vimos o efeito disto na eleição presidencial de 2002.

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