domingo, 24 de novembro de 2024

Sobre ansiedade

 Eu sou correntista do Banco do Brasil. Nos primeiros meses deste ano, me deparei com uma fotografia de Gilberto Gil na imagem de abertura do aplicativo para celulares deste banco. A imagem era divinal: Gil muito elegante com uma roupa clara segurando um lírio de caule longo como uma lança. Aquela imagem foi muito estudada e a fotografia, esmerada. Era a propaganda de uma apresentação do grande artista da música nacional patrocinada por um dos produtos do banco. Trata-se da última série de espetáculos que Gilberto Gil fará.

Por ser quem é, o artista já atrairia milhares de espectadores. Com a informação de que será a última apresentação, certamente a busca de ingressos seria grande. As datas programadas para os espetáculos por todo país foram divulgadas nas semanas subsequentes: seriam no ano seguinte, em 2025.

Então teremos que planejar um evento[1] com mais de um ano de antecedência?

As propagandas no aplicativo do próprio banco tiveram grande alcance, já que este banco é o maior do nosso imenso país. Como o Tesouro Nacional é movimentado através dele, seu tamanho é bastante vultoso. A importância desta empresa nacional é significativa e conhecida. Com uma foto tão artística e bem produzida, mesmo quem não é fã de Gil ficaria com vontade de assistir ao espetáculo.

E por que esta divulgação acontece tão precocemente?

Em minha cidade, a apresentação acontecerá em uma imensa arena: nosso estádio de futebol reformado e ampliado para os jogos da Copa do Mundo de 2014. Como Brasília não conta com times de futebol importantes para o cenário nacional, nosso estádio passou a demandar custos de manutenção ao governo do Distrito Federal ao invés de gerar recursos aos cofres públicos. Ele foi arrendado e passou a ser usado para eventos culturais tanto em sua área interna quando perimetral.

Devido ao tamanho da arena, os lugares para apresentação de Gil foram mapeados e distribuídos com diferentes preços. Os lugares mais distantes são as arquibancadas superiores. De lá, mal se vê o artista. É necessária a instalação de telões que possibilitem a visualização do que acontece no palco. Assim, a pessoa vai ao espetáculo e assiste à transmissão ao vivo por vídeo com segundos de atraso. Esta localização tem o nome de Andar com Fé. Mais próxima do que a arquibancada, estão as cadeiras inferiores denominadas A Paz. A pista na frente do palco tem o nome de Aquele Abraço. Quanto mais perto do palco, mais caro o ingresso. Quem conhece minimamente o artista, sabe como estes nomes são significativos em sua carreira. São nomes de músicas que fizeram grande sucesso. Deve ter sido difícil escolher somente três músicas. Mas há, ainda, uma área mais próxima ao palco. Trata-se da parte frontal da pista na frente do palco. Seria interessante se esta área, quase no gargarejo, recebesse o nome de Palco, outro grande sucesso de Gil. Mas esta área foi nominada Pista Premium Banco do Brasil.

Que choque!

Esta última área teve suas vendas abertas em agosto de 2024 exclusivamente para clientes do Ourocard. Os ingressos tinham, inicialmente, os valores correspondentes às cadeiras inferiores. Quantos clientes novos a empresa Ourocard conseguiu com esta programação? Com a venda antecipad(íssim)a, creio que a empresa não precisou desembolsar nada. Os ingressos da Pista Premium se esgotaram rapidamente. A propaganda linda, divulgada na própria mão de possíveis interessado/as, preços reduzidos para compra antecipada e mais ainda para clientes do banco geraram expectativa de uma chance imperdível. Eu não tenho informações de quando as entradas para a Pista Premium foram esgotadas.

O patrocínio que assegurará a turnê em questão é do Ourocard, o cartão do Banco do Brasil. É provável que a venda destes ingressos de forma tão precoce tenha garantido o valor necessário para a produção do evento sem necessidade de movimentar valores patrimoniais da empresa.

Temos uma engenhosidade sagaz aqui, não é mesmo?

E este planejamento que gera expectativa, que faz os fãs de Gil quererem aproveitar uma grande oportunidade gera ansiedade.

Este formato de grande negócio para vendedores não foi criado para a arte. Vimos este mesmo estilo de vendas criar comoção, euforia e compras compulsivas pela empresa estadunidense Apple. Seus produtos são incrivelmente caros. Sua qualidade, entretanto, supera os produtos similares, garantem o/as consumidore/as. Seus programas e aplicativos são protegidos de invasões de piratas de internet, mas alguns precisam ainda ser pagos mensalmente, conforme me informou uma colega de trabalho que tem um computador portátil desta marca.

O que eu trouxe aqui para nossa análise conjunta não é meramente uma descrição comercial de um evento. O que eu trago é um modo de operação que gera doença psíquica para grandes contingentes populacionais. E adoecimento psíquico é um de nossos temas.

A partir da expectativa de realizar uma compra excepcional, gera-se ansiedade, competição, consumismo, compulsão, vigilância constante... Quais são os efeitos dessas emoções e comportamentos quando vivenciados permanentemente por uma população inteira? A tensão gerada por possibilidade de grandes oportunidades destrói o corpo de operadores de bolsa de valores. Este estudo é antigo e seus resultados já são de domínio público. Estes trabalhadores recebem comissões vultosas por seus ganhos na administração de compra e venda de ações empresariais, mas deverão administrar os impactos desta vida terrível poucos anos depois de ingressarem nesta área. Será que podemos comparar o mercado de ações com o novo sistema de propaganda de produtos comerciais?

Temos a ansiedade como uma emoção que vem aumentando seu contágio e atingindo pessoas cada vez mais jovens. Viver sem ansiedade me parece como estar um pouco fora do mundo. Quem tem mais de trinta anos pode verificar em sua própria existência o aumento de nosso ritmo de vida. Nosso tempo foi reduzido, nossas obrigações aumentaram, há muitas oportunidades que não podem ser perdidas, temos muitos eventos para frequentar, cursos imprescindíveis, necessidades urgentes para satisfazer.

De onde tudo isto veio?

Suponho que este estado de coisas foi gerado por quem ganha financeiramente com ele. Nenhuma indústria lucrou mais com a pandemia de covid-19 e a estratégia de isolamento físico gerada por ela que a farmacêutica. Eu não vou citar dados estatísticos para argumentar sobre isto, mas indicarei o crescimento de casas comerciais farmacêuticas em nossas ruas. Em minha cidade, o comércio se estende por ruas com 200 metros de extensão. Há ruas com três ou quatro drogarias. Notem que este comércio foi o único que visualmente cresceu durante a pandemia.

Para além de emoções nocivas controladas por psicotrópicos, a sensação de insegurança que a ansiedade traz, também pode vender outros produtos. Seguros de diversos tipos, previdência privada, sistemas de câmeras, automóveis individuais, condomínios verticais e horizontais com mais empregados, armas, plano de saúde, academias de ginástica, personal trainners, terapias convencionais e alternativas, médicos especialistas em transtornos mentais, profissionais treinados para recuperar traumas, psicóloga/os.

Precisamos estar atenta/os para manipulações de grandes contingentes populacionais e a geração de adoecimento. A quem estamos servindo ao recuperar pessoas para se manterem neste sistema de vida?

Entre 2018 e 19, um amigo querido começou a dizer ao nosso grupo de amigas psicólogas que a profissão do futuro era a nossa. Ele não pensou isto sozinho nem imaginou isto sem fundamento. E ser psicóloga neste panorama não parece algo proveitoso. Assim como se gera ansiedade através de bens culturais de massa e se vende ansiolíticos, há chance da responsabilidade pela ansiedade incontinente e crescente da população ser direcionada para nossa categoria profissional.

Os consultórios psiquiátricos estão lotados. As receitas de ansiolíticos e moderadores de humor são associadas a psicoterapia. Entretanto, minhas/meus colegas de faculdade não estão com seus consultórios cheios, muito pelo contrário. Os valores pagos aos profissionais de saúde pelos planos de saúde são baixíssimos. Conversei com uma colega e amiga esta semana e ela me falou das atuais dificuldades do consultório clínico psicoterápico. Em nossa conversa, ela concluiu que os problemas da/os clientes estão crônicos, intensos, desafiadores e de difícil superação. As demandas aumentaram, mas mudaram.

Quais são as nossas técnicas científicas para apoiar nossa/os clientes individualmente ou em pequenos grupos de modo a enfrentarem as doenças psíquicas e seus sofrimentos gerados pela cultura perniciosa a qual pertencemos?

Será que técnicas desenvolvidas há setenta anos promoverão recuperação ou manutenção de saúde psíquica neste panorama tão adoecedor?

É possível reduzir o impacto do adoecimento que percebemos em nossa/os clientes através da contextualização histórico-cultural atualizada?

Quais são os instrumentos da nossa ciência para enfrentarmos os desafios que nos são impostos?



[1] E não podemos dizer que seja um evento pessoal como um casamento, formatura ou aniversário de cinquenta anos.

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