Em 24 de abril de 2014, eu escrevi um texto aqui neste blog
chamado Viva o Futebol!
Nele, trouxe uma visão sobre as relações masculinas forjadas
desde a infância a partir da prática do futebol. O contato físico proibido para
homens é bem-visto e frequente durante uma partida de futebol, de basquete, nas
lutas. Apesar da violência de alguns embates corporais, eles trazem mais
benefícios que escoriações.
Muita coisa mudou nestes últimos dez anos e as relações
entre homens também mudou.
Temos visto mais homens com seus filhos, empurrando
carrinhos de bebês, abraçando-se amigavelmente, beijando-se de modo fraterno ou
amoroso, criando seus filhos sem as mães, responsabilizando-se por suas vidas
escolares. Mas ainda há muito o que mudar.
Tem sido cada vez mais comum acompanhar famílias
monoparentais tendo como adulto organizador um homem. Eles já não são chamados de ótimos pais por apenas
levarem e trazerem suas/seus filha/os para a escola. Nós os solicitamos em
nossas reuniões cada vez mais e os responsabilizamos pela educação da/os
pequena/os. Quando um/a estudante se machuca, entramos em contato com pai ou
mãe, sem priorizar qualquer dos dois.
O futebol perpassa muito da relação masculina. Para se
realizar um jogo com tantos participantes (dez, doze ou 22 pessoas fora o banco
de reserva e juízes), é necessário um consenso mínimo sobre as regras, mas,
principalmente, é preciso que as pessoas queiram estar juntas. Os conflitos
ocorridos antes do jogo ou gerados pelas disputas urgem ser sanadas para que a
partida siga. Nesta dinâmica, muitas emoções são engolidas sem digestão e muita
manipulação também ocorre.
As pessoas que escolhem os times costumam ser agradadas de
diversas formas na escola para que haja envolvimento na equipe desejada ou
mesmo para que se participe daquele jogo. Se os jogadores são sempre os mesmos,
então machucar o oponente se torna proibitivo. Amanhã, aquele adversário poderá
ser o colega de escola que escolhe os times e ele pode se lembrar da minha ação
de hoje. Jogadas perigosas também são evitadas para não lesionar os amigos.
Ouvi um choro muito sentido outro dia e fui verificar a “ocorrência”.
Um menino segurava um gelo logo abaixo da maçã do rosto silenciosamente. Mas
quem estava chorando? O choro vinha do pátio e era bem alto. Um amigo inseparável
do menino machucado chorava desesperadamente. Ele tinha chutado a bola, porém
atingiu o rosto do amigo que tentava cabecear a bola. As crianças são pequenas,
mas seus chutes são potentes, elas fazem escolinha de futebol e treinam com
técnicas. As bolas da escola estão sempre indo parar no telhado ou fora da
cerca. Temos que ir busca-las pelo menos uma vez a cada recreio, muitas bolas
são perdidas porque nossa rua tem um leve declive, elas rolam para longe. Além
disso, os meninos sabem que não gostamos de buscá-las e ralharemos, porque eles
não podem resgatá-las por motivo de segurança. Estes meninos competem a cada
recreio como se fosse uma final de campeonato. Converso com eles muitas vezes
para que brinquem de futebol ao invés de disputarem tanto. Através do conflito
aqui relatado, consegui mostrar a uma turma o quão sofrido pode ser a consequência
de um lance disputado com mais força.
Temos meninas jogando também. Aos poucos elas foram se
interessando e nós, profissionais da escola, impomos suas participações. Por
vezes, alguém reclama que algum/a jogador/a atrapalha por não jogar bem. Sempre
respondo que quem não joga bem precisa jogar mais do que os que já sabem jogar
para melhorar.
As contusões são exageradas ou ignoradas dependendo do objetivo.
Tivemos este ano um menininho de seis anos com grande habilidade. Chamávamo-lo
de Neymarzinho porque ele caia sem que ninguém o encostasse, rolava no chão e chorava,
impedindo a continuidade do jogo. Logo todos nós percebemos que era firula e
ele parou de se atirar ao solo. Ele era muito catimbeiro. Este aqui já aprendeu
que seu teatro mais atrapalha que ajuda o jogo e a diversão.
Relações sociais são feitas de sinceridades e também
manipulações emocionais. Um de nossos estudantes apresenta traços de
personalidade histérica. Perante qualquer ação que ocorresse fora de sua vontade,
ele reclamava e chorava até que seu desejo fosse atendido. E todo recreio
acabava com uma confusão para a professora resolver em sala de aula.
Conversamos em grupo por duas vezes, eu fui bastante incisiva indicando a
conduta reprovável e o impacto nocivo em todo grupo. A consequência do não
aproveitamento do tempo de recreio por causa do conflito e as emoções esfrangalhadas
posteriores. Com o apoio dos colegas, uma histeria descontrolada foi ajustada possibilitando
o convívio e a adaptação. Depois de nossas intervenções no recreio e no grupo
menor, os conflitos minguaram: não os presencio mais e não há mais queixas por
parte da professora.
Homens adultos também participam das partidas e são muito
cuidadosos evitando contusões nos pequenos. Nossos ex-estudantes também
participam de jogos ao final do turno. Estas partidas nos mostram quão
cuidadosos os homens podem ser com os pequenos. Assim, podemos mostrar-lhes seu
potencial de bons cuidadores e a falácia do mito do amor materno.
Estou mostrando aqui como um jogo de preferência infantil
pode ser utilizado como ferramenta de intervenção em grupos. Os jogos e
brincadeiras são naturais na ação infantil. Através delas podemos promover o
desenvolvimento de nossas crianças.
Nesta escola, o futebol é tão importante que as crianças pediam para as famílias virem buscá-las trinta minutos depois de terminado o turno. Isto prendia as trabalhadoras na escola para realizar a entrega da criança em segurança. Ouvi a diretora palestrando no pátio uma tarde e não consegui conter meu riso. Ela dizia da impossibilidade de as famílias aceitarem tal solicitação infantil porque as profissionais tinham horário, tinham famílias para cuidar e queriam voltar para seus lares e descansar de seu dia de trabalho. Que bronca!
Ao redor da quadra de futebol, as famílias permanecem ao
final dos turnos matutino e vespertino. Enquanto esperam seus filhos jogarem
mais uma partida ou escalarem as estruturas de concreto coloridas que compõem o
espaço disponível, mães e pais se conhecem e trocam informações. O futebol
possibilita o contato entre as pessoas, criando e fortalecendo laços. Trabalhar
as famílias nesta escola é bastante fácil devido a esta característica. A
comunidade escolar é ativa, participa dos eventos, reuniões, conselho escolar,
fiscalizam e criticam nosso trabalho. Eu acredito que o futebol seja a liga desta
escola.
Às vezes, eu digo para algumas famílias que atendo que elas nos dão muito trabalho, mas nós preferimos assim. Mesmo trabalhosas, elas são bastante participativas.
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