domingo, 15 de dezembro de 2024

Ainda sobre futebol

Em 24 de abril de 2014, eu escrevi um texto aqui neste blog chamado Viva o Futebol!

Nele, trouxe uma visão sobre as relações masculinas forjadas desde a infância a partir da prática do futebol. O contato físico proibido para homens é bem-visto e frequente durante uma partida de futebol, de basquete, nas lutas. Apesar da violência de alguns embates corporais, eles trazem mais benefícios que escoriações.

Muita coisa mudou nestes últimos dez anos e as relações entre homens também mudou.

Temos visto mais homens com seus filhos, empurrando carrinhos de bebês, abraçando-se amigavelmente, beijando-se de modo fraterno ou amoroso, criando seus filhos sem as mães, responsabilizando-se por suas vidas escolares. Mas ainda há muito o que mudar.

Tem sido cada vez mais comum acompanhar famílias monoparentais tendo como adulto organizador um homem. Eles já não são chamados de ótimos pais por apenas levarem e trazerem suas/seus filha/os para a escola. Nós os solicitamos em nossas reuniões cada vez mais e os responsabilizamos pela educação da/os pequena/os. Quando um/a estudante se machuca, entramos em contato com pai ou mãe, sem priorizar qualquer dos dois.

O futebol perpassa muito da relação masculina. Para se realizar um jogo com tantos participantes (dez, doze ou 22 pessoas fora o banco de reserva e juízes), é necessário um consenso mínimo sobre as regras, mas, principalmente, é preciso que as pessoas queiram estar juntas. Os conflitos ocorridos antes do jogo ou gerados pelas disputas urgem ser sanadas para que a partida siga. Nesta dinâmica, muitas emoções são engolidas sem digestão e muita manipulação também ocorre.

As pessoas que escolhem os times costumam ser agradadas de diversas formas na escola para que haja envolvimento na equipe desejada ou mesmo para que se participe daquele jogo. Se os jogadores são sempre os mesmos, então machucar o oponente se torna proibitivo. Amanhã, aquele adversário poderá ser o colega de escola que escolhe os times e ele pode se lembrar da minha ação de hoje. Jogadas perigosas também são evitadas para não lesionar os amigos.

Ouvi um choro muito sentido outro dia e fui verificar a “ocorrência”. Um menino segurava um gelo logo abaixo da maçã do rosto silenciosamente. Mas quem estava chorando? O choro vinha do pátio e era bem alto. Um amigo inseparável do menino machucado chorava desesperadamente. Ele tinha chutado a bola, porém atingiu o rosto do amigo que tentava cabecear a bola. As crianças são pequenas, mas seus chutes são potentes, elas fazem escolinha de futebol e treinam com técnicas. As bolas da escola estão sempre indo parar no telhado ou fora da cerca. Temos que ir busca-las pelo menos uma vez a cada recreio, muitas bolas são perdidas porque nossa rua tem um leve declive, elas rolam para longe. Além disso, os meninos sabem que não gostamos de buscá-las e ralharemos, porque eles não podem resgatá-las por motivo de segurança. Estes meninos competem a cada recreio como se fosse uma final de campeonato. Converso com eles muitas vezes para que brinquem de futebol ao invés de disputarem tanto. Através do conflito aqui relatado, consegui mostrar a uma turma o quão sofrido pode ser a consequência de um lance disputado com mais força.

Temos meninas jogando também. Aos poucos elas foram se interessando e nós, profissionais da escola, impomos suas participações. Por vezes, alguém reclama que algum/a jogador/a atrapalha por não jogar bem. Sempre respondo que quem não joga bem precisa jogar mais do que os que já sabem jogar para melhorar.

As contusões são exageradas ou ignoradas dependendo do objetivo. Tivemos este ano um menininho de seis anos com grande habilidade. Chamávamo-lo de Neymarzinho porque ele caia sem que ninguém o encostasse, rolava no chão e chorava, impedindo a continuidade do jogo. Logo todos nós percebemos que era firula e ele parou de se atirar ao solo. Ele era muito catimbeiro. Este aqui já aprendeu que seu teatro mais atrapalha que ajuda o jogo e a diversão.

Relações sociais são feitas de sinceridades e também manipulações emocionais. Um de nossos estudantes apresenta traços de personalidade histérica. Perante qualquer ação que ocorresse fora de sua vontade, ele reclamava e chorava até que seu desejo fosse atendido. E todo recreio acabava com uma confusão para a professora resolver em sala de aula. Conversamos em grupo por duas vezes, eu fui bastante incisiva indicando a conduta reprovável e o impacto nocivo em todo grupo. A consequência do não aproveitamento do tempo de recreio por causa do conflito e as emoções esfrangalhadas posteriores. Com o apoio dos colegas, uma histeria descontrolada foi ajustada possibilitando o convívio e a adaptação. Depois de nossas intervenções no recreio e no grupo menor, os conflitos minguaram: não os presencio mais e não há mais queixas por parte da professora.

Homens adultos também participam das partidas e são muito cuidadosos evitando contusões nos pequenos. Nossos ex-estudantes também participam de jogos ao final do turno. Estas partidas nos mostram quão cuidadosos os homens podem ser com os pequenos. Assim, podemos mostrar-lhes seu potencial de bons cuidadores e a falácia do mito do amor materno.

Estou mostrando aqui como um jogo de preferência infantil pode ser utilizado como ferramenta de intervenção em grupos. Os jogos e brincadeiras são naturais na ação infantil. Através delas podemos promover o desenvolvimento de nossas crianças.

Nesta escola, o futebol é tão importante que as crianças pediam para as famílias virem buscá-las trinta minutos depois de terminado o turno. Isto prendia as trabalhadoras na escola para realizar a entrega da criança em segurança. Ouvi a diretora palestrando no pátio uma tarde e não consegui conter meu riso. Ela dizia da impossibilidade de as famílias aceitarem tal solicitação infantil porque as profissionais tinham horário, tinham famílias para cuidar e queriam voltar para seus lares e descansar de seu dia de trabalho. Que bronca!

Ao redor da quadra de futebol, as famílias permanecem ao final dos turnos matutino e vespertino. Enquanto esperam seus filhos jogarem mais uma partida ou escalarem as estruturas de concreto coloridas que compõem o espaço disponível, mães e pais se conhecem e trocam informações. O futebol possibilita o contato entre as pessoas, criando e fortalecendo laços. Trabalhar as famílias nesta escola é bastante fácil devido a esta característica. A comunidade escolar é ativa, participa dos eventos, reuniões, conselho escolar, fiscalizam e criticam nosso trabalho. Eu acredito que o futebol seja a liga desta escola.

Às vezes, eu digo para algumas famílias que atendo que elas nos dão muito trabalho, mas nós preferimos assim. Mesmo trabalhosas, elas são bastante participativas.

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