domingo, 15 de dezembro de 2024

A desistência em aprender ou da falha do sistema de ensino tradicional

 Neste último mês, realizei algumas observações em uma turma específica por causa de uma criança. A turma contém outros estudantes que apresentam dificuldades de aprendizagem associadas a questões emocionais e familiares preocupantes. Ampliei meu olhar para toda a turma para possibilitar a detecção de informações que pudessem auxiliar os demais estudantes.

Por muita sorte minha, a professora é apaixonada por sua profissão. Me parece uma intelectual e há potencial para ser pesquisadora. É muito interessada por questões sociais e engajada na militância em causas de minorias. É uma profissional atenta que demonstra boas leituras do ambiente social e de seus estudantes. Durante a aula, ela ofereceu um assunto novo e o anunciou classicamente: “eu gostaria que vocês prestassem bastante atenção agora, por favor!”.

O fenômeno que eu nunca tive observado saltou aos meus olhos: todos os estudantes (sim, eram todos meninos!) que eu acompanho por terem dificuldades de aprendizagem desta turma olharam para lados diferentes ao que a professora estava imediatamente à sua chamada de atenção. Os outros, participativos, engajados e com bons rendimentos, estavam com ela. Foi chocante para mim perceber tão nitidamente algo que deveria ter sido óbvio para mim. Depois, comentando sobre meu achado com a docente, ela me relatou que já havia percebido o fenômeno. Ela, entretanto, não poderia parar para chamá-los de forma insistente, pois a maioria dos estudantes estava respondendo ao chamado.

Em várias observações minhas nesta turma, percebi que os estudantes que acompanho com problemas de aprendizagem não se atentaram a explicações da professora. Estas crianças desistiram de sua busca pelo objeto do conhecimento? Será que elas falharam tantas vezes que sequer tentam?

Certamente, sua desatenção, quando algo novo lhes é anunciado, prejudica sua compreensão e, consequentemente, seu aprendizado. Algum mecanismo atua para que estas crianças se dispersem justamente quando lhes é pedido o foco.

A atenção tem sido muito estudada e treinada com o avanço das neurociências através de suas pesquisas e aplicações em consultório. Será que o desvio da atenção quando esta é solicitada em grupo já foi analisado? Já sabemos que a atenção é necessária para a aprendizagem. A mente humana não absorve informação caso não haja direcionamento de sentidos para a fonte. Independente da porta sensorial de entrada da novidade ou do estímulo, a atenção à sensação que traz o novo é essencial para sua apreensão.

A fixação da informação é compreendida de diversas formas conforme as teorias de aprendizagem mais conhecidas por nós no Brasil. Me refiro a Freud, Piaget, Vygotsky, Wallon, Althuser, Skinner. Professores relapsos já notaram que estudantes fazem a mesma conta (em período de dez minutos, por exemplo) várias vezes sem perceber que ela está anotada em seu caderno. E a aprendizagem se mostra fragilizada porque não há envolvimento real com o objeto do conhecimento. A repetição não se torna prática nem enfadonha. As crianças fazem as contas repetidamente sem perceberem que é desnessária ou sem perceberem o que, de fato, estão realizando.

Minha alternativa ao fenômeno quando ele ocorreu no foco da minha atenção foi fazer um contato tátil com a criança que estava ao meu alcance, trazendo-o para o presente e indicando a posição atual da professora fisicamente. Meu estudante estudado conseguiu avançar com o meu cutucão em seu braço. Minhas intervenções imediatas ao fenômeno têm sido bem-sucedidas. Entretanto, não posso garantir sua permanência. Acredito que é necessário pesquisar mais sobre a fuga da atenção para desvendar o funcionamento do mecanismo de dispersão. Outra crença minha é a de que são diversos os motivos que fazem a atenção saltar para longe e, provavelmente, cada uma das minhas crianças tem sua fonte de razões para se afastar do conhecimento.

Há pouco tempo, avaliei um estudante com dificuldade de aprendizagem acentuada. Este menino era muito sociável, tinha muitos amigos e sempre era convidado para brincadeiras com os demais tanto dentro de sala de aula, quanto no recreio ou na vizinhança de sua residência, conforme a família me relatou. Sua dispersão em aula era notória. Ele foi a criança mais desatenta que eu estudei. Ele não elaborava as atividades escolares em casa. Na escola, a primeira tarefa da rotina era a correção do dever de casa. Ele já sabia que a correção viria e não se dava ao trabalho de respondê-la anteriormente.

Eu realmente não acho que isto seja estúpido, mas muito pelo contrário, me pareceu até inteligente. Se o professor dará a resposta no início da aula seguinte, para que eu vou perder meu tempo de brincadeiras com vizinhos ou compartilhando ações com meu pai para desenvolvê-las fora da escola? Isto me parece mais com um desentendimento dos mecanismos escolares. Minhas professoras não conseguiram convercer esta criança sobre a importância da elaboração dos exercícios escolares em casa. Simples, não?

Este meu estudante passava a primeira hora da aula conversando com seus amigos e copiando as respostas do dever de casa em seu caderno de forma maquinal. Sem engajamento com o assunto, ele não aprendia nada com a “revisão” evocada na atividade proposta pelo professor. Todos os demais estudantes da turma já estavam em outra atividade e, por vezes, assistindo a aula sobre assuntos novos enquanto ele estava copiando o que era oferecido na lousa de forma atrasada.

Esta era a fonte de seu problema de aprendizagem. Expliquei-lhe que havia tempo bastante para brincadeira dentro de sala de aula. Ele poderia aprender, fazer as atividades e brincar com os demais se estivesse no ritmo estabelecido pelo professor. Para tanto, fiz um treino de atenção permanecendo ao seu lado desde o início da aula por alguns dias. A auto-regulação de suas atividades foi treinada e a dificuldade de aprendizagem foi superada. Ele precisou de um período de tempo para chegar no mesmo nível dos demais de sua turma porque já vinha perdendo conteúdo importante há mais de um ano letivo. Afinal de contas, o encaminhamento para a minha avaliação só acontecia quando o problema de aprendizagem já estava cristalizado. Com forte apoio da família acompanhando a resolução dos deveres de casa, as tarefas chegavam respondidas e ele conseguia seguir o professor. Depois de duas semanas, ele já realizava as tarefas de casa sem auxílio do pai. Este apenas o lembrava do momento das tarefas.

Muito de problemas de aprendizagem decorrem de defasagem de conhecimento curricular advindos da má compreensão do funcionamento escolar. Algo muito básico como entender que a professora anuncia questões de prova quando diz “prestem (muita) atenção ao que direi agora!” não é conhecido pelo corpo discente. Esta ignorância acontece inclusive na faculdade. Como algo tão básico pode passar desapercebido por tantas pessoas mesmo depois de tantos anos na escola? Eu já testei a reação de muitos estudantes com dificuldade de aprendizagem ao “revelar-lhes” isto. Suas sobrancelhas sobem em sinal de surpresa à novidade.

Esta chave tão óbvia está escondida. Por que será que as professoras não revelam o funcionamento dos métodos escolares para seus estudantes? Ou será que o demonstram e as crianças não conseguem perceber sua permanência através dos anos? Será que as professoras conseguem sistematizar estas ações repetitivas em si e em suas colegas de profissão?

Seja como for, o desentendimento do funcionamento escolar me parece fonte de desistência por parte de muitos de meus estudantes. Sua incompreensão deste mecanismo os afasta do conhecimento, provocando uma ruptura com o sistema educacional. Mesmo sendo duas coisas formalmente independentes, o funcionamento escolar e o conhecimento curricular dependem um do outro para se manifestarem. Às crianças é negado seu conhecimento aprofundado, portanto seu domínio é prejudicado. Somente alguns estudantes intuem e se adaptam ao sistema educacional. A estes, o sucesso escolar fica garantido. À/os demais, resta burlar o sistema através de colas, compras de trabalhos, conchavos e outras formas de burla.

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