Acompanhando o dia-a-dia escolar, percebemos nitidamente a
tendência a resolver questões pedagógicas com diagnósticos médicos e
medicamentos correspondentes. Falta de atenção tem direcionamento para
neurologistas. As professoras sabem inclusive os exames que serão solicitados
pelo especialista. Também conhecem o nome do remédio que será indicado.
Agitação motora, falha na compreensão de textos orais, atraso na alfabetização,
excesso de saídas para uso de banheiro, falta de limites... Todos estes
“sintomas” tem locais certos para obter solução.
Ultimamente, crianças voluntariosas também têm sido
encaminhadas para consultórios médicos. Tratei disto recentemente, mas não com
esta vertente, na postagem Mais Ainda Sobre Autismo[1].
A pedagogia costuma escapar da solução de problemas
difíceis. Nós da psicologia fomos chamadas há muitos anos para sanar questões
pedagógicas. Aceitamos a proposta e nos associamos ao campo do magistério.
Entretanto, há soluções que são do processo de ensino e nenhuma outra ciência
trará a solução para as professoras.
A atual “fuga” da responsabilidade sobre os próprios
problemas da pedagogia foi denominada medicalização da infância. Ela teve a
adesão da maioria das famílias com as quais convivo. E as famílias não
aderentes são consideradas “difíceis”, descuidadas pelas professoras. Depois de
tentarem todos os métodos para alcançar a aprendizagem do que oferecem para
a/os pequena/os, as professoras buscam algum motivo fora de seu escopo para apontar.
A própria incompetência e a pesquisa por novas formas de superar aquele
problema laboral não costumam ser aventadas. Ressalvo aqui algumas professoras
que têm perfil de pesquisadoras e são reconhecidas pelas colegas enquanto tal,
pois costumam ter desempenho bem superior às demais.
Os vários encaminhamentos de crianças que não tem
efetivamente nenhuma doença clínica gera diagnósticos que, obviamente, não
solucionam o problema da dificuldade de aprendizagem. Este/as estudantes são
levado/as à clínicas médicas, fonoaudiológicas, psicológicas em diferentes
anos. Vários profissionais, diversas especialidades, diferentes épocas da vida
da criança produzem uma multiplicidade de CIDs. Este conjunto de quadros
sintomáticos de dificuldades de aprendizagem se agrupa em transtornos mentais e
são referidos por siglas: DPAc[2], TDAH[3], TEA[4] (anteriormente indicado
por TGD[5]), TOD[6], TC[7].
A CID é a Classificação Internacional de Doenças elaborada
pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Cada doença classificada é categorizada
e associada a letras do alfabeto. Especificidades são numeradas. A CID-11 foi
lançada em junho de 2018 e deverá ser obedecida no Brasil por toda a classe
médica a partir de janeiro de 2025 abandonando por completo a CID-10. A OMS
determinou um período de adaptação porque a forma de codificação mudou bastante
da CID-10 para a CID-11. Assim, entre 2018 e 2014, foi possível usar as duas
classificações.
Quando recebemos um conjunto de diagnósticos ou um laudo
médico com vários CIDs para uma criança, eu chamo de sopa de letrinhas. Há estudantes
que apresentam quatro das siglas indicadas acima (por exemplo, DPAc, TOD, TDAH,
TEA). Quando isto acontece, temos um patente caso de ignorância sobre o caso.
Ou a situação da criança não está sendo informada corretamente à/o
profissional, ou o caso é solucionável na instituição educacional com um pouco
mais de atenção por parte da equipe escolar.
Uma sopa de letrinhas é uma característica que chama minha
atenção. Me parece um caso de desistência de algum/a envolvido/a. Eu digo isto
porque a CID-11 cataloga mais de 55.000 códigos para doenças[8]. Compreendo que um médico
não conheça toda a CID-11 a ponto de fazer um diagnóstico 100% correto, mas
associar vários códigos para caracterizar um diagnóstico me parece bastante
cômodo.
Em minha formação profissional, aprendi que nosso
atendimento é mais valioso para nossa/o cliente que o nome possível para o mal
que a/o aflige. As exigências da medicina impedem seus práticos de agir desta
forma. Acredito que isto ocorra principalmente devido à comunicação da área com
outras instâncias legais envolvendo trabalho, processos judiciais, previdência
social, por exemplo. Médico/as merecem realmente grande reconhecimento por sua
prática laboral. Sua responsabilidade e necessidade de estudo e pesquisa são
grandes e constantes.
Em minha experiência nas escolas, tenho conseguido auxiliar
a superação do fenômeno da sopa de letrinhas através de um relatório ao atual
profissional que acompanha a criança em questão no sentido de focalizar seu
olhar e definir o melhor código CID para o quadro, se for o caso de um número
para auxiliar a atenção para aquela criança.
O relatório de um/a psicóloga/o escolar é necessariamente mais aprofundado e abrangente que o da/o colega clínico porque estamos no ambiente da/o estudante. Nós não somos um/a profissional estranho ao seu convívio. Observações em sala de aula e recreio podem ser realizadas sem que o comportamento infantil se modifique totalmente. Além disso, as demais crianças que frequentam a escola com aquela têm acesso livre a nós. Acrescentamos ainda o acesso a todas a/os profissionais escolares e entes familiares que dispomos. Esta naturalização nos proporciona visão privilegiada do/a pequeno/a. Eis a possibilidade de solução para a sopa de letrinhas em nossas mãos, inclusive para indicar que não há necessidade de CID alguma.
[2]
Distúrbio do processamento auditivo (o “c” refere-se a central, mas saiu da
nomenclatura devido ao pleonasmo caracterizado por processamento já ser
considerado central, no cérebro, conforme o entendimento científico).
[3]
Transtorno de déficit de atenção com/sem hiperatividade.
[4]
Transtorno do espectro autista.
[5]
Transtorno global do desenvolvimento.
[6]
Transtorno opositor desafiador.
[7]
Transtorno de conduta.
[8]
Conforme IA Google em 14/12/2024 (https://www.google.com/search?q=a+cid-11+abarca+quantas+doen%C3%A7as&sca_esv=e4496ce707522e72&sxsrf=ADLYWIJYFTEmB1GbWCsjsFVvWoTTjoA45g%3A1734222207497&ei=fyFeZ7-KHsn21sQPxJ7vsQQ&ved=0ahUKEwj_xY6VwaiKAxVJu5UCHUTPO0YQ4dUDCBA&uact=5&oq=a+cid-11+abarca+quantas+doen%C3%A7as&gs_lp=Egxnd3Mtd2l6LXNlcnAiIGEgY2lkLTExIGFiYXJjYSBxdWFudGFzIGRvZW7Dp2FzMgUQIRigAUi52wFQ1QxYn9YBcAx4AZABAJgB6QGgAfI9qgEHMC4yOS4xM7gBA8gBAPgBAZgCNKAC6TyoAhLCAgcQIxgnGOoCwgIHEC4YJxjqAsICFBAAGIAEGOMEGLQCGOkEGOoC2AEBwgIQEAAYAxi0AhjqAhiPAdgBAcICEBAuGAMYtAIY6gIYjwHYAQHCAgoQIxiABBgnGIoFwgIEECMYJ8ICCxAAGIAEGLEDGIMBwgIIEAAYgAQYsQPCAgUQABiABMICBBAAGAPCAg4QLhiABBixAxiDARiKBcICCBAuGIAEGLEDwgIKEAAYgAQYQxiKBcICCxAAGIAEGLEDGIoFwgIOEC4YgAQYsQMY0QMYxwHCAgsQLhiABBixAxiDAcICDRAuGIAEGEMY1AIYigXCAg4QABiABBixAxiDARiKBcICDRAuGIAEGLEDGEMYigXCAgsQLhiABBjHARivAcICBRAuGIAEwgIKEC4YgAQYQxiKBcICChAAGIAEGBQYhwLCAgYQABgWGB7CAgsQABiABBiSAxiBcICCRAAGBYYyQMYHsICBBAhGBWYAw3xBcz0kJhoXn-sugYGCAEQARgBkgcIMTIuMjYuMTSgB8uPAg&sclient=gws-wiz-serp)
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