sábado, 14 de dezembro de 2024

Sopa de letrinhas

Acompanhando o dia-a-dia escolar, percebemos nitidamente a tendência a resolver questões pedagógicas com diagnósticos médicos e medicamentos correspondentes. Falta de atenção tem direcionamento para neurologistas. As professoras sabem inclusive os exames que serão solicitados pelo especialista. Também conhecem o nome do remédio que será indicado. Agitação motora, falha na compreensão de textos orais, atraso na alfabetização, excesso de saídas para uso de banheiro, falta de limites... Todos estes “sintomas” tem locais certos para obter solução.

Ultimamente, crianças voluntariosas também têm sido encaminhadas para consultórios médicos. Tratei disto recentemente, mas não com esta vertente, na postagem Mais Ainda Sobre Autismo[1].

A pedagogia costuma escapar da solução de problemas difíceis. Nós da psicologia fomos chamadas há muitos anos para sanar questões pedagógicas. Aceitamos a proposta e nos associamos ao campo do magistério. Entretanto, há soluções que são do processo de ensino e nenhuma outra ciência trará a solução para as professoras.

A atual “fuga” da responsabilidade sobre os próprios problemas da pedagogia foi denominada medicalização da infância. Ela teve a adesão da maioria das famílias com as quais convivo. E as famílias não aderentes são consideradas “difíceis”, descuidadas pelas professoras. Depois de tentarem todos os métodos para alcançar a aprendizagem do que oferecem para a/os pequena/os, as professoras buscam algum motivo fora de seu escopo para apontar. A própria incompetência e a pesquisa por novas formas de superar aquele problema laboral não costumam ser aventadas. Ressalvo aqui algumas professoras que têm perfil de pesquisadoras e são reconhecidas pelas colegas enquanto tal, pois costumam ter desempenho bem superior às demais.

Os vários encaminhamentos de crianças que não tem efetivamente nenhuma doença clínica gera diagnósticos que, obviamente, não solucionam o problema da dificuldade de aprendizagem. Este/as estudantes são levado/as à clínicas médicas, fonoaudiológicas, psicológicas em diferentes anos. Vários profissionais, diversas especialidades, diferentes épocas da vida da criança produzem uma multiplicidade de CIDs. Este conjunto de quadros sintomáticos de dificuldades de aprendizagem se agrupa em transtornos mentais e são referidos por siglas: DPAc[2], TDAH[3], TEA[4] (anteriormente indicado por TGD[5]), TOD[6], TC[7].

A CID é a Classificação Internacional de Doenças elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Cada doença classificada é categorizada e associada a letras do alfabeto. Especificidades são numeradas. A CID-11 foi lançada em junho de 2018 e deverá ser obedecida no Brasil por toda a classe médica a partir de janeiro de 2025 abandonando por completo a CID-10. A OMS determinou um período de adaptação porque a forma de codificação mudou bastante da CID-10 para a CID-11. Assim, entre 2018 e 2014, foi possível usar as duas classificações.

Quando recebemos um conjunto de diagnósticos ou um laudo médico com vários CIDs para uma criança, eu chamo de sopa de letrinhas. Há estudantes que apresentam quatro das siglas indicadas acima (por exemplo, DPAc, TOD, TDAH, TEA). Quando isto acontece, temos um patente caso de ignorância sobre o caso. Ou a situação da criança não está sendo informada corretamente à/o profissional, ou o caso é solucionável na instituição educacional com um pouco mais de atenção por parte da equipe escolar.

Uma sopa de letrinhas é uma característica que chama minha atenção. Me parece um caso de desistência de algum/a envolvido/a. Eu digo isto porque a CID-11 cataloga mais de 55.000 códigos para doenças[8]. Compreendo que um médico não conheça toda a CID-11 a ponto de fazer um diagnóstico 100% correto, mas associar vários códigos para caracterizar um diagnóstico me parece bastante cômodo.

Em minha formação profissional, aprendi que nosso atendimento é mais valioso para nossa/o cliente que o nome possível para o mal que a/o aflige. As exigências da medicina impedem seus práticos de agir desta forma. Acredito que isto ocorra principalmente devido à comunicação da área com outras instâncias legais envolvendo trabalho, processos judiciais, previdência social, por exemplo. Médico/as merecem realmente grande reconhecimento por sua prática laboral. Sua responsabilidade e necessidade de estudo e pesquisa são grandes e constantes.

Em minha experiência nas escolas, tenho conseguido auxiliar a superação do fenômeno da sopa de letrinhas através de um relatório ao atual profissional que acompanha a criança em questão no sentido de focalizar seu olhar e definir o melhor código CID para o quadro, se for o caso de um número para auxiliar a atenção para aquela criança.

O relatório de um/a psicóloga/o escolar é necessariamente mais aprofundado e abrangente que o da/o colega clínico porque estamos no ambiente da/o estudante. Nós não somos um/a profissional estranho ao seu convívio. Observações em sala de aula e recreio podem ser realizadas sem que o comportamento infantil se modifique totalmente. Além disso, as demais crianças que frequentam a escola com aquela têm acesso livre a nós. Acrescentamos ainda o acesso a todas a/os profissionais escolares e entes familiares que dispomos. Esta naturalização nos proporciona visão privilegiada do/a pequeno/a. Eis a possibilidade de solução para a sopa de letrinhas em nossas mãos, inclusive para indicar que não há necessidade de CID alguma.



[2] Distúrbio do processamento auditivo (o “c” refere-se a central, mas saiu da nomenclatura devido ao pleonasmo caracterizado por processamento já ser considerado central, no cérebro, conforme o entendimento científico).

[3] Transtorno de déficit de atenção com/sem hiperatividade.

[4] Transtorno do espectro autista.

[5] Transtorno global do desenvolvimento.

[6] Transtorno opositor desafiador.

[7] Transtorno de conduta.

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