quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Mais ainda sobre autismo

Temos observado um crescimento de casos de autismo na escola onde trabalho nos últimos cinco anos. Há muitas famílias que migram para Brasília, principalmente se um dos pais é militar, buscando atendimento diferenciado que oferecemos em nossas escolas públicas. Esta é uma das razões para o crescimento de casos em nossas escolas.

Outro fator que se pode indicar como causa para tal aumento é a visão sensível de profissionais para diagnosticar o quadro clínico típico do autismo. Profissionais da saúde e da educação têm realizado cursos e convivido com mais crianças autistas. A experiência e a curiosidade de profissionais podem funcionar como o facho de luz de uma lanterna facilitando a identificação de crianças com este quadro.

Talvez o uso de medicação como coadjuvante para o controle emocional de pessoas no espectro do autismo também tenha provocado maior atenção de especialistas médico/as ao diagnóstico. Sabemos que há um incentivo de grandes laboratórios para médicos que prescrevem seus produtos. Para realizar a prescrição medicamentosa, é necessário sinalizar algum diagnóstico compatível.

O Movimento do Orgulho Autista foi muito bem sucedido em diminuir a resistência de familiares de crianças no espectro autista frente ao diagnóstico. Ultimamente, familiares sugerem tal diagnóstico em reuniões comigo. Além do movimento, terapias aplicadas com sucesso têm oferecido mais esperança de adaptação social às pessoas que convivem com autistas. Também há mais informações da população em geral e marcadores visuais para sinalizar as deficiências ocultas como as típicas de autistas[1]. Para se adaptar ao atendimento de pessoas com autismo, setores do comércio e serviço buscaram treinamento de pessoal. Durante estes treinamentos, houve auto-identificação, redução de preconceitos, busca de informações aprofundadas, promoção de compaixão e consequente acolhimento por parte de pessoas que não convivem com autismo.

O crescimento de diagnósticos tardios também aumentou a divulgação das características do transtorno, além da conscientização de pessoas que não atuam diretamente nas áreas de saúde e educação. Ao relatarem seus sintomas e se revelarem autistas para amiga/os e colegas de trabalho e/ou cursos, estes adolescentes e adulto/as promovem a ampliação do alcance de informações acerca do transtorno do espectro autista. Assim, mais pessoas têm acesso a informação provocando o acréscimo no volume de identificações de pessoas com TEA. Perceber indivíduos adaptados à sociedade, muitos já engajados no mercado de trabalho, suavisa o impacto do diagnóstico nas famílias de crianças com suspeita de autismo. Refletir sobre os efeitos do diagnóstico nas relações sociais da família e suas expectativas para o futuro daquele ente se torna mais suave e menos angustiante.

Acrescenta-se a isto, todo o avanço legal conquistado pelo movimento do orgulho autista nos últimos dez anos:

Lei nº 12.764/2012 – institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.

Lei 14.626/2023 – estende o direito ao atendimento prioritário para pessoas com TEA. 

Lei 13.861/2019 – estabelece a inclusão de perguntas sobre o autismo no censo. 

Lei 7.611/2011 – dispõe sobre a educação especial e o atendimento educacional especializado. 

Lei 10.098/2000 – estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade. 

A instituição a qual pertenço oferece atendimento diferenciado a estudantes no espectro autista, com deficiências ou transtornos funcionais (TDAH, TPAc, dislexia entre outros). Um destes atendimentos é a redução de estudantes por turma conforme a quantidade de estudantes com necessidades educacionais especiais (ENEE). A quantidade de pessoas com autismo por turma tem crescido tanto que as delimitações normativas não têm sido respeitadas pela/os nossa/os planejadore/as.

O atendimento diferenciado para cada caso de transtorno funcional específico em sala de aula pela professora torna o planejamento de aula exigente. E a prática docente têm ficado mais desafiadora. Uma de minhas turmas tem duas crianças no espectro autista, uma com síndrome de Down e duas com transtornos funcionais diferentes. A turma tem dezoito estudantes e recebe apoio de outro profissional da escola, além de apoio voluntário de pessoas externas à instituição escolar. Este apoio busca suplantar as dificuldades enfrentadas por possíveis choques de reações entre as crianças.

Eu não imagino como seria administrar uma turma como esta em níveis educacionais mais avançado, com estudantes adolescentes, por exemplo. É preocupante também que as pessoas com TEA progredirão para o ensino fundamental e médio com diversos professores por turma. O ensino fundamental séries finais (do 6º ao 9º ano) funciona com nove matérias diferentes. O ensino médio (do 1º ao 3º ano) conta com onze professore/as. Se o curso for técnico, a quantidade de matérias aumenta ainda mais (dezenove em turno integral).

As professoras com as quais trabalho fazem um perfil comportamental de cada criança no prazo de duas semanas aproximadamente. Elas permanecem 25 horas semanais com a mesma turma de quinze a trinta estudantes. As turmas com autistas tem redução de estudantes para que a professora disponibilize seu tempo de atendimento individualizado com as crianças que demandam mais ações em prol de sua aprendizagem e segurança em sala de aula. Quanto tempo um/a professor/a que leciona para trezentos estudantes precisará para estudar, mapear, planejar-se considerando a/os estudantes com TEA que estão em suas turmas?

Se as pessoas com autismo estão sendo diagnosticadas com maior facilidade, elas conviverão entre si também em quantidade crescente. Pessoas com TEA se desorganizam emocionalmente por motivos nem sempre identificáveis e muitas vezes demoram para se reorganizarem de modo a prosseguir com suas atividades cotidianas. Este é um dos sintomas comuns do quadro característico de TEA. Estas pessoas conviverão entre si além de compartilharem espaços com outros indivíduos provocativos ou desrespeitosos. Uma pessoa autista nem sempre consegue controlar o próprio comportamento de modo a não disparar crises em outras com TEA. E estudantes neurotípico/as podem atingir emocionalmente autistas com palavras, gestos ou atos por vários motivos, inclusive pura e simplesmente atrapalhar a aula.

Penso que há dois problemas que precisam ser analisados a partir da situação que descrevo neste texto. O primeiro é indicado pelo assombro que se tem com o quantitativo tão aumentado de autistas ao nosso redor. Eles estavam o tempo todo convivendo sem que especialistas se dessem conta? Ou alguma coisa em nossa cultura foi modificada a ponto de provocar o autismo? Eu acredito que os indivíduos com TEA do nível de suporte 1 conviviam passivamente apesar de seu sofrimento e engajamento para se adaptar à/os demais. Pessoas com TEA em nível de suporte 2 e 3 eram diagnosticadas porque seu comportamento é muito destacado. Assim, a resposta para estas duas perguntas propostas é sim.

O segundo problema refere-se à fidedignidade do diagnóstico oferecido pelas classes médica e psicológica. Será que todos estes diagnósticos estão corretos? Todas as pessoas indicadas com TEA têm, realmente, características que satisfazem este diagnóstico conforme a Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) ou o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria? Ouso responder negativamente a esta questão.

Para se considerar uma pessoa com TEA é necessário que seu comportamento típico se enquadre em três campos: linguagem, relacionamento social, estereotipias. Mesmo contemplando a ampliação do arcabouço do autismo através do conceito espectro que o DSM- V trouxe, desvios ou distúrbios nestas três áreas devem estar presentes no comportamento de quem recebe o diagnóstico.

Eu tenho encontrado crianças e adultos que não apresentam comportamentos condizentes com o quadro e estão diagnosticada/os como TEA. Esta situação me parece bastante preocupante. Isto porque indivíduos com autismo precisam de apoio para alcançar uma vida plena, necessitam cuidados especiais em sua educação e por parte de quem com ele/as convivem ao longo de sua vida. Por ser assim, estas pessoas têm mais direitos do que as demais que não enfrentam suas dificuldades. Estes direitos envolvem os atendimentos prioritários e diferenciados mencionados no início deste texto, por exemplo. E incluem também acesso facilitado a empregos.

Sabemos que grandes populações e vantagens provocam intenções de fraudes. O acesso a melhores serviços, supressão de filas, atendimentos prioritários em diversos âmbitos, mais atenção, delicadeza e cuidado, melhores escolas, empregos mais rentáveis são elementos altamente desejáveis. Todos estes direitos de pessoas autistas têm provocado indivíduos neurotípicos em direção a fraudar serviços e concursos públicos. Atento ao volume de ocorrências neste sentido, o Conselho Federal de Psicologia acionou nossa classe profissional a tomar algumas precauções adicionais na entrega de relatórios de avaliação e decisão de diagnósticos.

Além disso, há que se considerar os riscos de um diagnóstico preferencial. É possível percebermos uma tendência em direção a um diagnóstico na classe médica. Nós, leigos em medicina, não comentamos mais quando voltamos de um atendimento em pronto-socorro com diagnóstico de virose. A variedade de sintomas que corresponde a virose é tão grande que a possibilidade de erro é pequeno. Entretanto, o erro de diagnóstico por um/a médico/a pode ter efeitos devastadores. E, no caso em discussão, gera consequências sociais que não me parecem estar sendo consideradas.

O diagnóstico de TEA é realizado através de relato de pessoas que convivem com uma criança ou pelo autorelato, se o/a “paciente” é adolescente ou adulto/a. Considerando as informações amplamente difundidas acerca das características de autismo, uma pessoa inteligente pode facilmente induzir um/a médico/a a indicar este diagnóstico. Para evitar que esta falha ocorra, a classe médica tem recorrido a profissionais em avaliação neuropsicológica. Através de testes psicométricos, entrevistas, observações em consultórios, psicóloga/os têm oferecido suas análises que, por sua vez, embasam o direcionamento e definição diagnóstica. Se visualizarmos rapidamente que o “sintoma” isolamento social pode ser classificado como personalidade esquizóide, esquizotípica, casos de esquizofrenia, fobia social, hikikomori por exemplo; podemos pensar em quantos erros temos produzido por meras tendências.

Outro problema, bastante grave em meu entendimento, relaciona-se ao financiamento oferecido pela indústria farmacêutica para a elaboração do DSM-V. Este financiamento foi denunciado internacionalmente e duramente criticado durante os trabalhos da quinta edição do manual a ponto de uma revisão já ter sido publicada em 2023 (o DSM-V é de 2013). O crescimento de casos com o diagnóstico em estudo cresceu sensivelmente após a publicação do DSM-V. E estes casos tem sido medicados com drogas que podem gerar dependência e efeitos colaterais preocupantes. A medicalização de nossas crianças é algo bastante sério, terá efeitos em seu desenvolvimento, em sua aprendizagem, em seu modo de se relacionar com pares. Tenho acompanhado perturbações comportamentais a partir de interações medicamentosas e/ou de efeitos colaterais de medicamentos administrados em estudante autista de sete anos. Esta criança ainda não apresenta linguagem comunicativa e demonstra um nível de sofrimento que angustia a todos que estão ao seu redor. A experimentação medicamentosa pode gerar grande sofrimento ao invés de sanar problemas. Retornar ao estado anterior à medicação deletéria tem demorado mais do que o desejável. Esta experimentação é delicadíssima se considerarmos que o funcionamento cerebral de uma criança autista é diferente do funcionamento de uma criança neurotípica.

Concluindo esta análise, é importante indicar o aumento do volume de procura por consultas neurológicas e neuropsicológicas nos últimos cinco anos. Eu não tenho este levantamento de dados, mas acompanho o crescimento nos valores das consultas e na frequência com que ouço as famílias buscando por tais serviços. Vejo com bastante crítica as pessoas serem encaminhadas para neurologista ao invés de psiquiatras, como deveria ser o caso já que não há exames que detectem os marcadores físicos de autismo.

Saímos há três anos de uma pandemia devastadora. Os efeitos da covid-19 ainda estão sendo sentidas nas vidas de todos nós. As ausências sentidas, as sequelas físicas que a doenças nos deixou, o receio de reincidivas somam-se à nossa defasagem social. Ainda não nos recuperamos do efeito da quebra de convívio físico entre cidadã/os, as suscetibilidades geradas pelo isolamento, as dificuldades de compaixão. Estar consigo mesmo durante a última pandemia teve efeito deletério em algumas pessoas mais do que em outras? Este fator está sendo analisado pela classe médica? Todas as pessoas tiveram dificuldades para retornar aos desafios diários que nos impõe o convívio social. Será que todos nós já superamos estes óbices? Será que pessoas menos sociáveis estão sendo diagnosticadas adequadamente? Ou terá surgido um novo quadro nosológico?

[1] cordão de girassol é um acessório utilizado como símbolo de conscientização e apoio a pessoas autistas e com deficiências ocultas. Inspirado na beleza e resiliência dos girassóis, esse cordão representa solidariedade e compreensão. Foi instituído pela lei nº 14.624 de 17 de julho de 2023. Fonte:https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/07/19/cordao-com-desenhos-de-girassol-para-deficiencias-vira-simbolo-nacional, acessado em 28/11/2024.


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