Temos observado um crescimento de casos
de autismo na escola onde trabalho nos últimos cinco anos. Há muitas famílias
que migram para Brasília, principalmente se um dos pais é militar, buscando
atendimento diferenciado que oferecemos em nossas escolas públicas. Esta é uma
das razões para o crescimento de casos em nossas escolas.
Outro fator que se pode indicar como
causa para tal aumento é a visão sensível de profissionais para diagnosticar o
quadro clínico típico do autismo. Profissionais da saúde e da educação têm
realizado cursos e convivido com mais crianças autistas. A experiência e a
curiosidade de profissionais podem funcionar como o facho de luz de uma
lanterna facilitando a identificação de crianças com este quadro.
Talvez o uso de medicação como
coadjuvante para o controle emocional de pessoas no espectro do autismo também
tenha provocado maior atenção de especialistas médico/as ao diagnóstico.
Sabemos que há um incentivo de grandes laboratórios para médicos que prescrevem
seus produtos. Para realizar a prescrição medicamentosa, é necessário sinalizar
algum diagnóstico compatível.
O Movimento do Orgulho Autista foi
muito bem sucedido em diminuir a resistência de familiares de crianças no
espectro autista frente ao diagnóstico. Ultimamente, familiares sugerem tal
diagnóstico em reuniões comigo. Além do movimento, terapias aplicadas com
sucesso têm oferecido mais esperança de adaptação social às pessoas que
convivem com autistas. Também há mais informações da população em geral e
marcadores visuais para sinalizar as deficiências ocultas como as típicas de
autistas[1].
Para se adaptar ao atendimento de pessoas com autismo, setores do comércio e
serviço buscaram treinamento de pessoal. Durante estes treinamentos, houve
auto-identificação, redução de preconceitos, busca de informações aprofundadas,
promoção de compaixão e consequente acolhimento por parte de pessoas que não
convivem com autismo.
O crescimento de diagnósticos tardios
também aumentou a divulgação das características do transtorno, além da
conscientização de pessoas que não atuam diretamente nas áreas de saúde e
educação. Ao relatarem seus sintomas e se revelarem autistas para amiga/os e colegas
de trabalho e/ou cursos, estes adolescentes e adulto/as promovem a ampliação do
alcance de informações acerca do transtorno do espectro autista. Assim, mais
pessoas têm acesso a informação provocando o acréscimo no volume de identificações
de pessoas com TEA. Perceber indivíduos adaptados à sociedade, muitos já
engajados no mercado de trabalho, suavisa o impacto do diagnóstico nas famílias
de crianças com suspeita de autismo. Refletir sobre os efeitos do diagnóstico
nas relações sociais da família e suas expectativas para o futuro daquele ente
se torna mais suave e menos angustiante.
Acrescenta-se a isto, todo o avanço
legal conquistado pelo movimento do orgulho autista nos últimos dez anos:
Lei
nº 12.764/2012 – institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da
Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
Lei
14.626/2023 – estende o direito ao atendimento prioritário para pessoas com
TEA.
Lei
13.861/2019 – estabelece a inclusão de perguntas sobre o autismo no censo.
Lei
7.611/2011 – dispõe sobre a educação especial e o atendimento educacional
especializado.
Lei
10.098/2000 – estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da
acessibilidade.
A instituição a qual pertenço oferece
atendimento diferenciado a estudantes no espectro autista, com deficiências ou
transtornos funcionais (TDAH, TPAc, dislexia entre outros). Um destes
atendimentos é a redução de estudantes por turma conforme a quantidade de
estudantes com necessidades educacionais especiais (ENEE). A quantidade de
pessoas com autismo por turma tem crescido tanto que as delimitações normativas
não têm sido respeitadas pela/os nossa/os planejadore/as.
O atendimento diferenciado para cada
caso de transtorno funcional específico em sala de aula pela professora torna o
planejamento de aula exigente. E a prática docente têm ficado mais desafiadora.
Uma de minhas turmas tem duas crianças no espectro autista, uma com síndrome de
Down e duas com transtornos funcionais diferentes. A turma tem dezoito
estudantes e recebe apoio de outro profissional da escola, além de apoio
voluntário de pessoas externas à instituição escolar. Este apoio busca
suplantar as dificuldades enfrentadas por possíveis choques de reações entre as
crianças.
Eu não imagino como seria administrar
uma turma como esta em níveis educacionais mais avançado, com estudantes
adolescentes, por exemplo. É preocupante também que as pessoas com TEA
progredirão para o ensino fundamental e médio com diversos professores por
turma. O ensino fundamental séries finais (do 6º ao 9º ano) funciona com nove
matérias diferentes. O ensino médio (do 1º ao 3º ano) conta com onze
professore/as. Se o curso for técnico, a quantidade de matérias aumenta ainda
mais (dezenove em turno integral).
As professoras com as quais trabalho
fazem um perfil comportamental de cada criança no prazo de duas semanas
aproximadamente. Elas permanecem 25 horas semanais com a mesma turma de quinze
a trinta estudantes. As turmas com autistas tem redução de estudantes para que
a professora disponibilize seu tempo de atendimento individualizado com as
crianças que demandam mais ações em prol de sua aprendizagem e segurança em
sala de aula. Quanto tempo um/a professor/a que leciona para trezentos
estudantes precisará para estudar, mapear, planejar-se considerando a/os
estudantes com TEA que estão em suas turmas?
Se as pessoas com autismo estão sendo
diagnosticadas com maior facilidade, elas conviverão entre si também em
quantidade crescente. Pessoas com TEA se desorganizam emocionalmente por
motivos nem sempre identificáveis e muitas vezes demoram para se reorganizarem
de modo a prosseguir com suas atividades cotidianas. Este é um dos sintomas
comuns do quadro característico de TEA. Estas pessoas conviverão entre si além
de compartilharem espaços com outros indivíduos provocativos ou desrespeitosos.
Uma pessoa autista nem sempre consegue controlar o próprio comportamento de
modo a não disparar crises em outras com TEA. E estudantes neurotípico/as podem
atingir emocionalmente autistas com palavras, gestos ou atos por vários motivos,
inclusive pura e simplesmente atrapalhar a aula.
Penso que há dois problemas que
precisam ser analisados a partir da situação que descrevo neste texto. O
primeiro é indicado pelo assombro que se tem com o quantitativo tão aumentado
de autistas ao nosso redor. Eles estavam o tempo todo convivendo sem que
especialistas se dessem conta? Ou alguma coisa em nossa cultura foi modificada
a ponto de provocar o autismo? Eu acredito que os indivíduos com TEA do nível
de suporte 1 conviviam passivamente apesar de seu sofrimento e engajamento para
se adaptar à/os demais. Pessoas com TEA em nível de suporte 2 e 3 eram
diagnosticadas porque seu comportamento é muito destacado. Assim, a resposta
para estas duas perguntas propostas é sim.
O segundo problema refere-se à
fidedignidade do diagnóstico oferecido pelas classes médica e psicológica. Será
que todos estes diagnósticos estão corretos? Todas as pessoas indicadas com TEA
têm, realmente, características que satisfazem este diagnóstico conforme a
Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde
(OMS) ou o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) da Associação Americana
de Psiquiatria? Ouso responder negativamente a esta questão.
Para se considerar uma pessoa com TEA é
necessário que seu comportamento típico se enquadre em três campos: linguagem,
relacionamento social, estereotipias. Mesmo contemplando a ampliação do
arcabouço do autismo através do conceito espectro que o DSM- V trouxe, desvios
ou distúrbios nestas três áreas devem estar presentes no comportamento de quem
recebe o diagnóstico.
Eu tenho encontrado crianças e adultos
que não apresentam comportamentos condizentes com o quadro e estão
diagnosticada/os como TEA. Esta situação me parece bastante preocupante. Isto
porque indivíduos com autismo precisam de apoio para alcançar uma vida plena,
necessitam cuidados especiais em sua educação e por parte de quem com ele/as
convivem ao longo de sua vida. Por ser assim, estas pessoas têm mais direitos
do que as demais que não enfrentam suas dificuldades. Estes direitos envolvem
os atendimentos prioritários e diferenciados mencionados no início deste texto,
por exemplo. E incluem também acesso facilitado a empregos.
Sabemos que grandes populações e
vantagens provocam intenções de fraudes. O acesso a melhores serviços,
supressão de filas, atendimentos prioritários em diversos âmbitos, mais
atenção, delicadeza e cuidado, melhores escolas, empregos mais rentáveis são
elementos altamente desejáveis. Todos estes direitos de pessoas autistas têm
provocado indivíduos neurotípicos em direção a fraudar serviços e concursos
públicos. Atento ao volume de ocorrências neste sentido, o Conselho Federal de
Psicologia acionou nossa classe profissional a tomar algumas precauções
adicionais na entrega de relatórios de avaliação e decisão de diagnósticos.
Além disso, há que se considerar os riscos
de um diagnóstico preferencial. É possível percebermos uma tendência em direção
a um diagnóstico na classe médica. Nós, leigos em medicina, não comentamos mais
quando voltamos de um atendimento em pronto-socorro com diagnóstico de virose.
A variedade de sintomas que corresponde a virose é tão grande que a possibilidade
de erro é pequeno. Entretanto, o erro de diagnóstico por um/a médico/a pode ter
efeitos devastadores. E, no caso em discussão, gera consequências sociais que
não me parecem estar sendo consideradas.
O diagnóstico de TEA é realizado
através de relato de pessoas que convivem com uma criança ou pelo autorelato,
se o/a “paciente” é adolescente ou adulto/a. Considerando as informações
amplamente difundidas acerca das características de autismo, uma pessoa
inteligente pode facilmente induzir um/a médico/a a indicar este diagnóstico.
Para evitar que esta falha ocorra, a classe médica tem recorrido a
profissionais em avaliação neuropsicológica. Através de testes psicométricos,
entrevistas, observações em consultórios, psicóloga/os têm oferecido suas
análises que, por sua vez, embasam o direcionamento e definição diagnóstica. Se
visualizarmos rapidamente que o “sintoma” isolamento social pode ser
classificado como personalidade esquizóide, esquizotípica, casos de
esquizofrenia, fobia social, hikikomori por exemplo; podemos pensar em
quantos erros temos produzido por meras tendências.
Outro problema, bastante grave em meu
entendimento, relaciona-se ao financiamento oferecido pela indústria
farmacêutica para a elaboração do DSM-V. Este financiamento foi denunciado
internacionalmente e duramente criticado durante os trabalhos da quinta edição
do manual a ponto de uma revisão já ter sido publicada em 2023 (o DSM-V é de 2013).
O crescimento de casos com o diagnóstico em estudo cresceu sensivelmente após a
publicação do DSM-V. E estes casos tem sido medicados com drogas que podem gerar
dependência e efeitos colaterais preocupantes. A medicalização de nossas
crianças é algo bastante sério, terá efeitos em seu desenvolvimento, em sua
aprendizagem, em seu modo de se relacionar com pares. Tenho acompanhado
perturbações comportamentais a partir de interações medicamentosas e/ou de
efeitos colaterais de medicamentos administrados em estudante autista de sete
anos. Esta criança ainda não apresenta linguagem comunicativa e demonstra um
nível de sofrimento que angustia a todos que estão ao seu redor. A
experimentação medicamentosa pode gerar grande sofrimento ao invés de sanar
problemas. Retornar ao estado anterior à medicação deletéria tem demorado mais
do que o desejável. Esta experimentação é delicadíssima se considerarmos que o
funcionamento cerebral de uma criança autista é diferente do funcionamento de
uma criança neurotípica.
Concluindo esta análise, é importante
indicar o aumento do volume de procura por consultas neurológicas e neuropsicológicas
nos últimos cinco anos. Eu não tenho este levantamento de dados, mas acompanho
o crescimento nos valores das consultas e na frequência com que ouço as
famílias buscando por tais serviços. Vejo com bastante crítica as pessoas serem
encaminhadas para neurologista ao invés de psiquiatras, como deveria ser o caso
já que não há exames que detectem os marcadores físicos de autismo.
Saímos há três anos de uma pandemia
devastadora. Os efeitos da covid-19 ainda estão sendo sentidas nas vidas de
todos nós. As ausências sentidas, as sequelas físicas que a doenças nos deixou,
o receio de reincidivas somam-se à nossa defasagem social. Ainda não nos
recuperamos do efeito da quebra de convívio físico entre cidadã/os, as
suscetibilidades geradas pelo isolamento, as dificuldades de compaixão. Estar
consigo mesmo durante a última pandemia teve efeito deletério em algumas
pessoas mais do que em outras? Este fator está sendo analisado pela classe
médica? Todas as pessoas tiveram dificuldades para retornar aos desafios
diários que nos impõe o convívio social. Será que todos nós já superamos estes
óbices? Será que pessoas menos sociáveis estão sendo diagnosticadas
adequadamente? Ou terá surgido um novo quadro nosológico?
[1]
O cordão de girassol é
um acessório utilizado como símbolo de conscientização e apoio a pessoas
autistas e com deficiências ocultas. Inspirado na beleza e resiliência dos
girassóis, esse cordão representa solidariedade e compreensão. Foi instituído
pela lei nº 14.624 de 17 de julho de 2023. Fonte:https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/07/19/cordao-com-desenhos-de-girassol-para-deficiencias-vira-simbolo-nacional,
acessado em 28/11/2024.
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