Eu sou correntista do Banco do Brasil. Nos primeiros meses deste ano, me deparei com uma fotografia de Gilberto Gil na imagem de abertura do aplicativo para celulares deste banco. A imagem era divinal: Gil muito elegante com uma roupa clara segurando um lírio de caule longo como uma lança. Aquela imagem foi muito estudada e a fotografia, esmerada. Era a propaganda de uma apresentação do grande artista da música nacional patrocinada por um dos produtos do banco. Trata-se da última série de espetáculos que Gilberto Gil fará.
Por ser quem é, o artista já atrairia milhares de espectadores.
Com a informação de que será a última apresentação, certamente a busca de
ingressos seria grande. As datas programadas para os espetáculos por todo país
foram divulgadas nas semanas subsequentes: seriam no ano seguinte, em 2025.
Então teremos que planejar um evento[1] com mais de um ano de antecedência?
As propagandas no aplicativo do próprio banco tiveram grande
alcance, já que este banco é o maior do nosso imenso país. Como o Tesouro
Nacional é movimentado através dele, seu tamanho é bastante vultoso. A
importância desta empresa nacional é significativa e conhecida. Com uma foto
tão artística e bem produzida, mesmo quem não é fã de Gil ficaria com vontade
de assistir ao espetáculo.
E por que esta divulgação acontece tão precocemente?
Em minha cidade, a apresentação acontecerá em uma imensa
arena: nosso estádio de futebol reformado e ampliado para os jogos da Copa do
Mundo de 2014. Como Brasília não conta com times de futebol importantes para o
cenário nacional, nosso estádio passou a demandar custos de manutenção ao
governo do Distrito Federal ao invés de gerar recursos aos cofres públicos. Ele
foi arrendado e passou a ser usado para eventos culturais tanto em sua área
interna quando perimetral.
Devido ao tamanho da arena, os lugares para apresentação de
Gil foram mapeados e distribuídos com diferentes preços. Os lugares mais
distantes são as arquibancadas superiores. De lá, mal se vê o artista. É
necessária a instalação de telões que possibilitem a visualização do que
acontece no palco. Assim, a pessoa vai ao espetáculo e assiste à transmissão ao
vivo por vídeo com segundos de atraso. Esta localização tem o nome de Andar com
Fé. Mais próxima do que a arquibancada, estão as cadeiras inferiores
denominadas A Paz. A pista na frente do palco tem o nome de Aquele Abraço. Quanto
mais perto do palco, mais caro o ingresso. Quem conhece minimamente o artista,
sabe como estes nomes são significativos em sua carreira. São nomes de músicas
que fizeram grande sucesso. Deve ter sido difícil escolher somente três músicas.
Mas há, ainda, uma área mais próxima ao palco. Trata-se da parte frontal da
pista na frente do palco. Seria interessante se esta área, quase no gargarejo, recebesse
o nome de Palco, outro grande sucesso de Gil. Mas esta área foi nominada Pista
Premium Banco do Brasil.
Que choque!
Esta última área teve suas vendas abertas em agosto de 2024
exclusivamente para clientes do Ourocard. Os ingressos tinham, inicialmente, os
valores correspondentes às cadeiras inferiores. Quantos clientes novos a empresa
Ourocard conseguiu com esta programação? Com a venda antecipad(íssim)a, creio
que a empresa não precisou desembolsar nada. Os ingressos da Pista Premium se
esgotaram rapidamente. A propaganda linda, divulgada na própria mão de
possíveis interessado/as, preços reduzidos para compra antecipada e mais ainda
para clientes do banco geraram expectativa de uma chance imperdível. Eu não tenho
informações de quando as entradas para a Pista Premium foram esgotadas.
O patrocínio que assegurará a turnê em questão é do Ourocard,
o cartão do Banco do Brasil. É provável que a venda destes ingressos de forma
tão precoce tenha garantido o valor necessário para a produção do evento sem
necessidade de movimentar valores patrimoniais da empresa.
Temos uma engenhosidade sagaz aqui, não é mesmo?
E este planejamento que gera expectativa, que faz os fãs de
Gil quererem aproveitar uma grande oportunidade gera ansiedade.
Este formato de grande negócio para vendedores não foi criado
para a arte. Vimos este mesmo estilo de vendas criar comoção, euforia e compras
compulsivas pela empresa estadunidense Apple. Seus produtos são incrivelmente
caros. Sua qualidade, entretanto, supera os produtos similares, garantem o/as
consumidore/as. Seus programas e aplicativos são protegidos de invasões de piratas
de internet, mas alguns precisam ainda ser pagos mensalmente, conforme me
informou uma colega de trabalho que tem um computador portátil desta marca.
O que eu trouxe aqui para nossa análise conjunta não é meramente
uma descrição comercial de um evento. O que eu trago é um modo de operação que
gera doença psíquica para grandes contingentes populacionais. E adoecimento psíquico
é um de nossos temas.
A partir da expectativa de realizar uma compra excepcional,
gera-se ansiedade, competição, consumismo, compulsão, vigilância constante...
Quais são os efeitos dessas emoções e comportamentos quando vivenciados
permanentemente por uma população inteira? A tensão gerada por possibilidade de
grandes oportunidades destrói o corpo de operadores de bolsa de valores. Este
estudo é antigo e seus resultados já são de domínio público. Estes
trabalhadores recebem comissões vultosas por seus ganhos na administração de
compra e venda de ações empresariais, mas deverão administrar os impactos desta
vida terrível poucos anos depois de ingressarem nesta área. Será que podemos
comparar o mercado de ações com o novo sistema de propaganda de produtos
comerciais?
Temos a ansiedade como uma emoção que vem aumentando seu contágio
e atingindo pessoas cada vez mais jovens. Viver sem ansiedade me parece como
estar um pouco fora do mundo. Quem tem mais de trinta anos pode verificar em
sua própria existência o aumento de nosso ritmo de vida. Nosso tempo foi reduzido,
nossas obrigações aumentaram, há muitas oportunidades que não podem ser perdidas,
temos muitos eventos para frequentar, cursos imprescindíveis, necessidades urgentes
para satisfazer.
De onde tudo isto veio?
Suponho que este estado de coisas foi gerado por quem ganha
financeiramente com ele. Nenhuma indústria lucrou mais com a pandemia de
covid-19 e a estratégia de isolamento físico gerada por ela que a farmacêutica.
Eu não vou citar dados estatísticos para argumentar sobre isto, mas indicarei o
crescimento de casas comerciais farmacêuticas em nossas ruas. Em minha cidade,
o comércio se estende por ruas com 200 metros de extensão. Há ruas com três ou
quatro drogarias. Notem que este comércio foi o único que visualmente cresceu
durante a pandemia.
Para além de emoções nocivas controladas por psicotrópicos,
a sensação de insegurança que a ansiedade traz, também pode vender outros
produtos. Seguros de diversos tipos, previdência privada, sistemas de câmeras,
automóveis individuais, condomínios verticais e horizontais com mais empregados,
armas, plano de saúde, academias de ginástica, personal trainners,
terapias convencionais e alternativas, médicos especialistas em transtornos
mentais, profissionais treinados para recuperar traumas, psicóloga/os.
Precisamos estar atenta/os para manipulações de grandes
contingentes populacionais e a geração de adoecimento. A quem estamos servindo
ao recuperar pessoas para se manterem neste sistema de vida?
Entre 2018 e 19, um amigo querido começou a dizer ao nosso
grupo de amigas psicólogas que a profissão do futuro era a nossa. Ele não
pensou isto sozinho nem imaginou isto sem fundamento. E ser psicóloga neste
panorama não parece algo proveitoso. Assim como se gera ansiedade através de
bens culturais de massa e se vende ansiolíticos, há chance da responsabilidade
pela ansiedade incontinente e crescente da população ser direcionada para nossa
categoria profissional.
Os consultórios psiquiátricos estão lotados. As receitas de
ansiolíticos e moderadores de humor são associadas a psicoterapia. Entretanto,
minhas/meus colegas de faculdade não estão com seus consultórios cheios, muito
pelo contrário. Os valores pagos aos profissionais de saúde pelos planos de
saúde são baixíssimos. Conversei com uma colega e amiga esta semana e ela me
falou das atuais dificuldades do consultório clínico psicoterápico. Em nossa
conversa, ela concluiu que os problemas da/os clientes estão crônicos, intensos,
desafiadores e de difícil superação. As demandas aumentaram, mas mudaram.
Quais são as nossas técnicas científicas para apoiar nossa/os
clientes individualmente ou em pequenos grupos de modo a enfrentarem as doenças
psíquicas e seus sofrimentos gerados pela cultura perniciosa a qual
pertencemos?
Será que técnicas desenvolvidas há setenta anos promoverão
recuperação ou manutenção de saúde psíquica neste panorama tão adoecedor?
É possível reduzir o impacto do adoecimento que percebemos em
nossa/os clientes através da contextualização histórico-cultural atualizada?
Quais são os instrumentos da nossa ciência para enfrentarmos
os desafios que nos são impostos?
[1]
E não podemos dizer que seja um evento pessoal como um casamento, formatura ou
aniversário de cinquenta anos.