domingo, 24 de novembro de 2024

Sobre ansiedade

 Eu sou correntista do Banco do Brasil. Nos primeiros meses deste ano, me deparei com uma fotografia de Gilberto Gil na imagem de abertura do aplicativo para celulares deste banco. A imagem era divinal: Gil muito elegante com uma roupa clara segurando um lírio de caule longo como uma lança. Aquela imagem foi muito estudada e a fotografia, esmerada. Era a propaganda de uma apresentação do grande artista da música nacional patrocinada por um dos produtos do banco. Trata-se da última série de espetáculos que Gilberto Gil fará.

Por ser quem é, o artista já atrairia milhares de espectadores. Com a informação de que será a última apresentação, certamente a busca de ingressos seria grande. As datas programadas para os espetáculos por todo país foram divulgadas nas semanas subsequentes: seriam no ano seguinte, em 2025.

Então teremos que planejar um evento[1] com mais de um ano de antecedência?

As propagandas no aplicativo do próprio banco tiveram grande alcance, já que este banco é o maior do nosso imenso país. Como o Tesouro Nacional é movimentado através dele, seu tamanho é bastante vultoso. A importância desta empresa nacional é significativa e conhecida. Com uma foto tão artística e bem produzida, mesmo quem não é fã de Gil ficaria com vontade de assistir ao espetáculo.

E por que esta divulgação acontece tão precocemente?

Em minha cidade, a apresentação acontecerá em uma imensa arena: nosso estádio de futebol reformado e ampliado para os jogos da Copa do Mundo de 2014. Como Brasília não conta com times de futebol importantes para o cenário nacional, nosso estádio passou a demandar custos de manutenção ao governo do Distrito Federal ao invés de gerar recursos aos cofres públicos. Ele foi arrendado e passou a ser usado para eventos culturais tanto em sua área interna quando perimetral.

Devido ao tamanho da arena, os lugares para apresentação de Gil foram mapeados e distribuídos com diferentes preços. Os lugares mais distantes são as arquibancadas superiores. De lá, mal se vê o artista. É necessária a instalação de telões que possibilitem a visualização do que acontece no palco. Assim, a pessoa vai ao espetáculo e assiste à transmissão ao vivo por vídeo com segundos de atraso. Esta localização tem o nome de Andar com Fé. Mais próxima do que a arquibancada, estão as cadeiras inferiores denominadas A Paz. A pista na frente do palco tem o nome de Aquele Abraço. Quanto mais perto do palco, mais caro o ingresso. Quem conhece minimamente o artista, sabe como estes nomes são significativos em sua carreira. São nomes de músicas que fizeram grande sucesso. Deve ter sido difícil escolher somente três músicas. Mas há, ainda, uma área mais próxima ao palco. Trata-se da parte frontal da pista na frente do palco. Seria interessante se esta área, quase no gargarejo, recebesse o nome de Palco, outro grande sucesso de Gil. Mas esta área foi nominada Pista Premium Banco do Brasil.

Que choque!

Esta última área teve suas vendas abertas em agosto de 2024 exclusivamente para clientes do Ourocard. Os ingressos tinham, inicialmente, os valores correspondentes às cadeiras inferiores. Quantos clientes novos a empresa Ourocard conseguiu com esta programação? Com a venda antecipad(íssim)a, creio que a empresa não precisou desembolsar nada. Os ingressos da Pista Premium se esgotaram rapidamente. A propaganda linda, divulgada na própria mão de possíveis interessado/as, preços reduzidos para compra antecipada e mais ainda para clientes do banco geraram expectativa de uma chance imperdível. Eu não tenho informações de quando as entradas para a Pista Premium foram esgotadas.

O patrocínio que assegurará a turnê em questão é do Ourocard, o cartão do Banco do Brasil. É provável que a venda destes ingressos de forma tão precoce tenha garantido o valor necessário para a produção do evento sem necessidade de movimentar valores patrimoniais da empresa.

Temos uma engenhosidade sagaz aqui, não é mesmo?

E este planejamento que gera expectativa, que faz os fãs de Gil quererem aproveitar uma grande oportunidade gera ansiedade.

Este formato de grande negócio para vendedores não foi criado para a arte. Vimos este mesmo estilo de vendas criar comoção, euforia e compras compulsivas pela empresa estadunidense Apple. Seus produtos são incrivelmente caros. Sua qualidade, entretanto, supera os produtos similares, garantem o/as consumidore/as. Seus programas e aplicativos são protegidos de invasões de piratas de internet, mas alguns precisam ainda ser pagos mensalmente, conforme me informou uma colega de trabalho que tem um computador portátil desta marca.

O que eu trouxe aqui para nossa análise conjunta não é meramente uma descrição comercial de um evento. O que eu trago é um modo de operação que gera doença psíquica para grandes contingentes populacionais. E adoecimento psíquico é um de nossos temas.

A partir da expectativa de realizar uma compra excepcional, gera-se ansiedade, competição, consumismo, compulsão, vigilância constante... Quais são os efeitos dessas emoções e comportamentos quando vivenciados permanentemente por uma população inteira? A tensão gerada por possibilidade de grandes oportunidades destrói o corpo de operadores de bolsa de valores. Este estudo é antigo e seus resultados já são de domínio público. Estes trabalhadores recebem comissões vultosas por seus ganhos na administração de compra e venda de ações empresariais, mas deverão administrar os impactos desta vida terrível poucos anos depois de ingressarem nesta área. Será que podemos comparar o mercado de ações com o novo sistema de propaganda de produtos comerciais?

Temos a ansiedade como uma emoção que vem aumentando seu contágio e atingindo pessoas cada vez mais jovens. Viver sem ansiedade me parece como estar um pouco fora do mundo. Quem tem mais de trinta anos pode verificar em sua própria existência o aumento de nosso ritmo de vida. Nosso tempo foi reduzido, nossas obrigações aumentaram, há muitas oportunidades que não podem ser perdidas, temos muitos eventos para frequentar, cursos imprescindíveis, necessidades urgentes para satisfazer.

De onde tudo isto veio?

Suponho que este estado de coisas foi gerado por quem ganha financeiramente com ele. Nenhuma indústria lucrou mais com a pandemia de covid-19 e a estratégia de isolamento físico gerada por ela que a farmacêutica. Eu não vou citar dados estatísticos para argumentar sobre isto, mas indicarei o crescimento de casas comerciais farmacêuticas em nossas ruas. Em minha cidade, o comércio se estende por ruas com 200 metros de extensão. Há ruas com três ou quatro drogarias. Notem que este comércio foi o único que visualmente cresceu durante a pandemia.

Para além de emoções nocivas controladas por psicotrópicos, a sensação de insegurança que a ansiedade traz, também pode vender outros produtos. Seguros de diversos tipos, previdência privada, sistemas de câmeras, automóveis individuais, condomínios verticais e horizontais com mais empregados, armas, plano de saúde, academias de ginástica, personal trainners, terapias convencionais e alternativas, médicos especialistas em transtornos mentais, profissionais treinados para recuperar traumas, psicóloga/os.

Precisamos estar atenta/os para manipulações de grandes contingentes populacionais e a geração de adoecimento. A quem estamos servindo ao recuperar pessoas para se manterem neste sistema de vida?

Entre 2018 e 19, um amigo querido começou a dizer ao nosso grupo de amigas psicólogas que a profissão do futuro era a nossa. Ele não pensou isto sozinho nem imaginou isto sem fundamento. E ser psicóloga neste panorama não parece algo proveitoso. Assim como se gera ansiedade através de bens culturais de massa e se vende ansiolíticos, há chance da responsabilidade pela ansiedade incontinente e crescente da população ser direcionada para nossa categoria profissional.

Os consultórios psiquiátricos estão lotados. As receitas de ansiolíticos e moderadores de humor são associadas a psicoterapia. Entretanto, minhas/meus colegas de faculdade não estão com seus consultórios cheios, muito pelo contrário. Os valores pagos aos profissionais de saúde pelos planos de saúde são baixíssimos. Conversei com uma colega e amiga esta semana e ela me falou das atuais dificuldades do consultório clínico psicoterápico. Em nossa conversa, ela concluiu que os problemas da/os clientes estão crônicos, intensos, desafiadores e de difícil superação. As demandas aumentaram, mas mudaram.

Quais são as nossas técnicas científicas para apoiar nossa/os clientes individualmente ou em pequenos grupos de modo a enfrentarem as doenças psíquicas e seus sofrimentos gerados pela cultura perniciosa a qual pertencemos?

Será que técnicas desenvolvidas há setenta anos promoverão recuperação ou manutenção de saúde psíquica neste panorama tão adoecedor?

É possível reduzir o impacto do adoecimento que percebemos em nossa/os clientes através da contextualização histórico-cultural atualizada?

Quais são os instrumentos da nossa ciência para enfrentarmos os desafios que nos são impostos?



[1] E não podemos dizer que seja um evento pessoal como um casamento, formatura ou aniversário de cinquenta anos.

sábado, 16 de novembro de 2024

Organização vital

 Muitas vezes reclamamos de elementos naturais sem nos darmos conta da grande importância que têm para a constituição humana, para nossa organização material ou psíquica. A nossa queda depois de adultos nos mostra o quanto o solo é duro. Cimento, asfalto, cerâmica, granito que revestem o chão onde pisamos nas ruas, em nossas casas e edifícios. O chão é tão duro que nos ofende. Tropeços, quedas, escoriações são riscos constantes quando estamos em movimento, mas aumentam quando há argila, buracos, poças d’água, obstáculos e, porque não dizer, bagunça. Embora não pensemos nele, a não ser que nos provoque algum risco, o solo nos dá suporte constante. E só há risco de queda porque há gravidade.

Esta força física estabelece organização em nossa vida. Sua importância é tão grande que sequer pensamos nela. Sem a gravidade, a vida como a conhecemos talvez não posse possível. A formação de rios, lagos, mares e chuva depende da força gravitacional. Uma experiência de física em estação espacial realizada por astronauta da agência espacial canadense (CSA/ASC) exemplifica isto surpreendentemente[1]. Sem gravidade, a água perde seu peso e se mantém flutuando ligada a si mesma ou a qualquer objeto com o qual entre em contato. Ela permanece. A água não cai, não corre. Assim, fenômenos comuns em nosso planeta não aconteceriam sem a força da gravidade. A vida aconteceria de forma bastante diferente da que presenciamos e conhecemos. É a gravidade que nos possibilita andar com segurança, manter os objetos onde estão, organizá-los, higienizarmo-nos e ao ambiente. Podemos reclamar de feridas ocasionadas por acidentes devidos à força da gravidade, mas como seria não termos esta força física nos organizando?

Reclamamos de muitas coisas constantes e, por vezes, fundamentais em nossas vidas sem nos atentarmos para o papel essencial que representam. Reclamamos de nossas mães, mas a maioria de nós mal pode pensar em como seria nossa vida sem suas presenças. Reclamamos de nossos síndicos e nem imaginamos quanto trabalho têm para administrar nosso bem imóvel ou nosso lar. Reclamamos de nossas professoras, porém o que dizemos da organização do conhecimento que elas planejam para nos apresentar, fazendo-o de forma que a complexidade chegue paulatinamente, facilitando nosso aprendizado?

Freud, em seu simples e fácil O Mal-Estar na Civilização[2], mostra-nos que há três grandes fontes de insatisfação humana. A primeira delas é a própria natureza com seus perigos de todas os reinos, seja animal, vegetal, mineral ou monera. Chuvas torrenciais, terremotos, descargas elétricas, alimentos venenosos, feras, aracnídeos peçonhentos ou insetos que podem nos trazer vírus, protozoários ou bactérias são alguns perigos que nos rondam permanentemente e dos quais necessitamos nos precaver constantemente. A segunda fonte de insatisfação humana é a fragilidade de nossa constituição física. Para enfrentar os perigos meramente exemplificativos listados acima, precisamos desenvolver artefatos artificiais. Nossas casas, tecnologias de extinção de animais sinantrópicos, vacinas são exemplos de aplicação de conhecimento em substituição da típica ausência de proteção física humana. E, para encerrar esta listinha de Freud, há a maior de todas as insatisfações: a advinda do contato com outro ser humano. As nossas relações sociais são fonte de grandes dissabores. E Freud ainda nos diz que esta dor nos parece maior porque deveríamos ter controle sobre ela. Enquanto humanos, podemos estabelecer regras que conduziriam nossas condutas de forma a evitar malefícios uns aos outros.[3]

Estudando direito há alguns anos atrás, percebi que estas normas de conduta existem e têm exatamente esta função, ou seja, regular nossas ações de modo a reduzirmos efeitos nocivos em nossos próximos e, por que não dizer, distantes[4]. Essas normas são as leis. Entretanto, há quem diga que as regras existem para serem quebradas. Além de não sabermos todas as leis existentes em nossa cidade (imagine em nosso país), as regras mais comuns e conhecidas – as de convivência entre vizinhos ou as de trânsito – são comumente rompidas.

E reclamamos de quem convive conosco. Quanto mais perto de nós, mais nos queixamos. As ações e omissões de quem amamos, queremos perto, nos preocupamos são as que mais nos ofendem. E, na maioria das vezes, não pensamos como seria estar no mundo sem esta(s) pessoa(s) em nossas vidas.

É justamente a convivência entre as pessoas que promove, com maior intensidade e efetividade, o nosso desenvolvimento. Nenhum ambiente, informação, animal, máquina ou programa dito inteligente se aproxima da experiência promovedora de crescimento que outro ser humano proporciona.

Discutindo com famílias na escola em vários momentos e oportunidades neste ano de 2024, concluímos que o melhor concorrente para um aparelho de celular seus jogos e vídeos automaticamente alternados é outro ser humano. As crianças se mantém unidas, tranquilas, se regulam mutuamente e por um período longo. Sim, elas brigam, mas, se as instruirmos adequadamente, conseguem se resolver com autonomia rapidamente.

Talvez devamos interferir menos na organização própria de crianças em uma escola. Oferecer temas, materiais e cuidar para não se machucarem pode ser mais produtivo que mantê-las em ordem, quietas, silenciosas, “atentas”, olhando para nós.

Além disso, todo ser humano é promotor de desenvolvimento para os que estão ao seu redor. Pensemos no que podemos aprender com aquele “ser humaninho”, parodiando Mustafary do talentoso Marco Luque, para evitarmos os sofrimentos que resistir e reclamar dele nos causa.



[1] Para ver a experiência com água na internet, busque por https://youtu.be/wmoVG7OZkGc, acessado em 16/11/2024.

[2] Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1930/1996.

[3] Capone, Vicenza C. Satisfação de idosos em ambientes de vizinhança de duas regiões do DF. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Brasília – DF, 2001.

[4] Muitas de nossas ações, formas de pensar e consumo atingem comunidades muito distantes de nós fisicamente. Os sons que promovemos com nossos deslocamentos pelo mundo afetam a vida marinha, por exemplo. Mesmo que não voemos constantemente ou viajemos de navio, nossas compras ou equipamentos que necessitamos para algumas de nossas atividades comuns chegam até nós por estas vias. Ouça o programa de áudio Ter que levantar a voz da Rádio Novelo Apresenta. Muitos de nossos artefatos metálicos advém de extrações em minas ou garimpos em terras indígenas. E a presença da atividade extrativista é muito impactante nestas comunidades e suas regiões.

https://open.spotify.com/episode/2Qv464pipvbRgJT8Wu30Sp?si=Oo4w61tKRUCX7kOKnP-84Q&t=902, acessado em 16/11/2024.

Sobre o impacto de nossas máquinas no interior dos continentes, acesse também o belíssimo e emocionante programa de áudio A Casa dos Espíritos no episódio Caixas pretas também da Rádio Novelo Apresenta.

https://open.spotify.com/episode/0rPDzb3ZMDAlVoX7qbQqHO?si=sYKnopOtRESfPvuqKNTjvQ, acessado em 19/11/2024.

Sobre erros e homens

Um amigo ontem me falou do impedimento em errar imposto a nós pela cultura ocidental. Meu amigo discursou sobre a real questão em não se pegar o caminho mais rápido em um trajeto, por exemplo. O objetivo está assegurado, não há pressa. Por que a agonia em se pegar o caminho mais rápido sempre? Qual a problema em errar?

O erro produz alternativas ao pensamento, pode alterar objetivos, leva a novas conjecturas, proporciona novas percepções (muito visíveis no caso de um caminho, como no exemplo que meu amigo me deu). O erro em si não representa um problema aqui. A questão está no sujeito que erra. Quais são os impactos personológicos sobre este sujeito?

Em nossa reunião de ontem, comprei-me um livro cuja temática me instiga teoricamente[1] há vinte e cinco anos, a saber, o homem e a masculinidade[2]. Trata-se de O Homem Não Existe[3] de Lívia Gonçalves Diniz e comecei a lê-lo assim que pude. O primeiro capítulo traz a questão da impotência e sua centralidade no órgão genital masculino. Lívia nos leva a compreender, através do confronto com a Psicanálise, que a ereção peniana condensa imageticamente o poder, o potencial humano, não apenas o masculino.

Entendo que o potencial de uma pessoa não é reduzido por objetivos frustrados. Ao buscar alcançar uma fruta ainda em sua árvore, qualquer um pode falhar. Isto não diminui sua capacidade de subir em árvores. Tomar um caminho mais longo para se chegar a algum lugar ou enfrentar um engarrafamento devido à escolha tomada no planejamento, não é sinal de impossibilidade de se chegar ao local desejado. Então por qual motivo ficamos tão abatida/os quando não conseguimos algo que sabemos ser possível? Por que uma derrota nos abala a segurança?

Fui acionada por uma mãe a atender seu filho que sofreu bulliyng por parte dos colegas e foi desacreditado pelo corpo docente em escola anterior. A criança é inteligente, perspicaz e demonstra raciocínio verbal muito rápido. Suas relações sociais são afetadas por esta velocidade, pois ele não tem paciência de explicar seu pensamento e os demais permanecem em desentendimento. Observando-o em sala de aula, percebi que confia muito em seu aparelho mental e não faz uso de papel. Sem este apoio, o menino tem resultados pífios em matemática, apesar de sua inteligência. Na ocasião de minha observação, ele fazia contas e as apagava. Os resultados eram certos, mas sua memória de trabalho era sobrecarregada por muitas informações. Misturando-as, ele errava a conta final. Intuo que a repetição de tal situação fez com que esta criança também desacreditasse de seu potencial. Uma semana depois de fazer uma intervenção com esta criança mostrando-lhe a importância do uso do papel, a professora me informou que seu comportamento e desempenho nas aulas de matemática haviam mudado.

Em várias observações minhas nesta turma, percebi que os estudantes que acompanho com problemas de aprendizagem não se atentaram a explicações da professora. Estas crianças desistiram de sua busca pelo objeto do conhecimento? Será que elas falharam tantas vezes que sequer tentam?

A emoção de meu amigo, sempre tão tranquilo, ao falar de erro também me instigou. Logo que meus amigos são meus objetos de estudo, posta a minha curiosidade perante ao fenômeno homem, ele é um dos meus sujeitos de pesquisa[5]. O entendimento da ideia que ele me trazia naquela conversa me emocionou e ele, homem que é, ficou constrangido e não soube como lidar com minhas lágrimas. Tal atitude interrompeu nossa discussão. A inabilidade em lidar com o choro também é um incômodo que nos abate como se houvesse uma forma fixa e correta no manejo emocional.

Eu e meu amigo temos como assunto comum recorrente o racismo, o colonialismo, as formas com que estes sistemas se apóiam, integram e operam mutuamente. O colonialismo nos mostra que nossos modos de existir são moldados por outras pessoas às quais sequer temos acesso. Nossas cidades, casas, roupas, se as usamos ou não e o quanto de nossa pele é exposta, nossas relações, nossos pensamentos, nossos sonhos e desejos são forjados por pessoas que não conhecemos. Aqui temos um paradigma acerca da liberdade. Estamos presos e não percebemos. E o meu amigo falou sobre a falta de liberdade expressa no impedimento ao erro.

A imposição da forma de ser colonialista acontece desconsiderando o clima local, as características do solo, as alterações comuns que as estações do ano trazem. Tomemos a vestimenta formal masculina: trata-se de um uniforme, como nos alerta Naomi Wolf em seu celebrado O Mito da Beleza[6]. Homens “respeitáveis” usam terno o ano inteiro em todas as regiões do globo às quais a cultura ocidental dominou. O que um homem sofre sensorialmente por estar de terno em um dia tropical de 30°C[7]? Faz parte do uniforme uma camiseta branca interna ao conjunto. O suor certamente virá porque o corpo está excessivamente coberto. A camiseta será de algodão para segurar o suor (algo desprezível culturalmente ligado à ideia de esforço físico, sujeira e mau odor) impedindo-o de chegar à visão geral. Será que o controle da temperatura corporal foi pensado ao se incluir esta peça ao conjunto? Digo isto porque conforto não me parece coerente com a imposição de fazer uma pessoa usar terno nos trópicos ou na zona equatorial. Ainda não perguntei a nenhum dos meus sujeitos, mas acredito que a camiseta de algodão tem uma função adicional de refrescar o constante calor percebido pelo indivíduo interno ao terno. Gravata, paletó, calça, meia, sapato fechado... Esta vestimenta é tão sem sentido quanto anti-ecológica.

Entretanto não usar terno é um problema, um erro, pode até ser uma gafe. E os homens se submetem para não serem acusados, constrangidos, destratados. Para pertencerem.

Racionalmente falando, o erro é usar terno. Assim como temer e evitar, ao custo de possível adoecimento psíquico, os erros típicos da natureza humana. Por que não podemos errar várias vezes? Essas ordens taxativas oprimem nossas ações e nos tornam menos do que poderíamos ser. “Errar é humano, mas errar duas vezes é burrice.” Temos obrigatoriamente que ser inteligentes o tempo todo. Temos que lembrar de tudo e de todos em todas e quaisquer situações. Temos que estar sempre bem-humorados e dispostos e disponíveis no nosso ambiente de trabalho.

Todos nós sofremos com estas exigências constantes. Devemos, todavia, fazer aqui um recorte de gênero. O patriarcado, para atingir seus objetivos de reserva dos postos de liderança aos homens brancos adultos, constrói a ideia de que comportamentos e situações ligadas (por ele) ao feminino são proibidas nas relações sociais e de trabalho, ambientes ligados ao masculino. Emoções lacrimosas (tristeza, espanto, frustração ou alegria, por exemplo), enganos, desculpas são ações “típicas” ou “esperadas” em mulheres. Aos homens sérios e competentes, aqueles nos quais podemos confiar, não podem apresentar tais comportamentos[8]. E este aprisionamento não se abranda quando os homens estão sozinhos. Mesmo sem ninguém por perto, um homem não se permite agir de forma a contrariar os preceitos de masculinidade.

Este estado de coisas incoerentes e opressoras produz adoecimento em diversos aspectos.

Quando será que os homens começam a sentir esta pressão quanto às suas ações?

Temos estatísticas assustadoras relativas às queixas escolares em meninos e há artigos científicos sérios mostrando isto. Eu trabalho com problemas de aprendizagem há vinte e quatro anos. Há mais de dez anos, eu e minhas colegas, em congressos e fora deles, discutimos a prevalência de problemas de aprendizagem em meninos. Chegamos a pensar que prestamos mais atenção a eles em detrimento das questões das meninas. Creio que podemos analisar aqui ambas as proposições, posto que vêm da mesma fonte.

Eu tive um estudante cuja dificuldade de aprendizagem desafiou profissionais competentes. Nós não conseguimos compreender o que fazia aquela criança não aprender, apesar de oferecermos diversos métodos e materiais, buscarmos seus temas de interesse, afastarmo-lo de registros escritos. Mas nós não testamos seu medo de errar. Nós percebemos que muitas de nossas crianças tem esse impedimento. Minhas professoras trazem a questão do erro em suas aulas, discutimos ao longo do ano em reuniões individuais ou coletivas de professoras e em conselhos de classe sobre a resistência que as crianças têm em errar. E a cantilena das professoras é a mesma “não se aprende sem errar”. Elas afirmam isso em suas aulas, não brigam com a/os pequena/os quando cometem algum engano, sugerem alterações, solicitam explicações gentilmente sobre a forma de solucionar as tarefas propostas para que a própria criança perceba seu erro e o corrija.

Quando eu chorei perante a revelação que meu amigo me trouxe, sentia o quão impactante são as regras de aceitação nesta cultura. Minha sensação era “até isso nos tomam?”. E a proposta dele é “vou errar sim”.

E agora, à luz deste pensamento auto-autorizativo e do maravilhoso ensaio de Ligia, penso no impacto negativo da interdição ao erro sobre nossas crianças do gênero masculino. E vou além: errar perante uma professora pode ser suave como se enganar defronte à própria mãe? O que acontece se o professor for um homem? Assim como meu amigo compartilha seu clamor pelo direito ao erro perante uma amiga com quem compartilha discussões teóricas ou com sua esposa, terá ele força o bastante para exercer este (desejado) direito diante de seu chefe ou seus colegas de trabalho ou mesmo seus clientes?

Temos aqui um problema típico da nossa ciência em conjunção com a sociologia. A psicanálise ensina a nos atentarmos ao repetitivo. Por que será que eu nunca me aprofundei no estudo do erro? Será mesmo que os erros das meninas não são tão problemáticos? As mulheres são liberadas para errar porque se espera isto de seu gênero?

Sabemos que o que eu trago aqui são elocubrações do meu cotidiano de práxis psicológica. Eu faço pesquisa-ação em minha atuação profissional, mas não tenho como pesquisar cada uma das questões suscitadas pelo meu cotidiano. Penso em doutorado, mas quando reflito em permanecer com apenas uma questão por quatro (ou mais) anos, me parece tão empobrecido e custoso que desisto. E a questão mais constante é mesmo sobre meninos.

Tenho o entendimento da fragilidade masculina. Digo isto a alguns homens para perceber suas reações e eles me parecem não ter refletido sobre o tema, não conseguir me responder ou argumentar, não há engajamento para que eu chegue a alguma conclusão mesmo rasa sobre esta fragilidade.

Ainda sobre o tema aqui explorado, qual o impacto do impedimento ao erro para homens no rebaixamento da auto-estima masculina?



[1] No sentido científico da palavra.

[2] Como sabemos, este tema não traz curiosidade apenas a mim (ainda bem). E chegamos a pensar em masculinidades, com “s”. E já temos um avanço.

[3] Diniz, Ligia G. O homem não existe: masculinidade, desejo e ficção. Rio de Janeiro: 2024. 

[5] Esta pesquisa é exploratória, observacional e inquiridora, portanto não há delineamento metodológico.

[6] Wolf, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

[7] Já falei sobre este assunto neste blog.

[8] Portar um terno elegante e bem cortado traz confiança. Vimos o efeito disto na eleição presidencial de 2002.