Em 2010, recebi o encaminhamento de uma criança para ser avaliada por dificuldade de aprendizagem. O menino não apresentava nenhum sinal de problema. Convoquei a mãe para aprofundar o estudo. Ao final de uma hora de entrevista, eu ainda não havia percebido qualquer questão que pudesse indicar uma pista para a superação do problema observado pela professora. Desfoquei o assunto da criança passando a tratar sobre a família e seu meio, como eram tratados pelas demais pessoas, quais eram suas dificuldades por serem negros.
A mãe baixou o olhar. Eu insisti. “Por
favor, me ensine. Se vocês não disserem, nós não saberemos.” A mãe respondeu: “Quando
eu passo, as pessoas puxam a bolsa.” Fiquei envergonhada. Pedi desculpas por
trazer aquele assunto.
A partir desta entrevista, passei
a prestar atenção nas pessoas nos ambientes em que me encontrava. Passei a
censurar meus julgamentos, cuidar de minhas ações impensadas relacionadas a
pessoas negras.
Em uma greve geral em 2016, durante
a manifestação, recebi uma aula do professor João Nogueira sobre colorismo. “Quanto
mais escura a pele, mais preconceito sofre a pessoa. Pessoas brancas não devem
se dizer negras porque não sofrem discriminação.”
Em 2020, durante o isolamento
físico devido a estratégia de enfrentamento à pandemia de covid-19, uma de
nossas professoras solicitou apoio para atender uma mãe excessivamente rigorosa
com o desempenho de seu filho. O menino tinha seis anos. A criança era uma das
melhores da turma, participativa e alegre, socializava bem, mas mostrava-se
ansiosa.
Por algum motivo que eu não sei
precisar, eu não quis participar desta reunião. Informei isto às colegas. Durante
aquela manhã, realizei todos os atendimentos agendados rapidamente. Ao buscar
mais uma tarefa para fazer, entrei em um dos arquivos compartilhados no qual dispúnhamos
os links de reuniões e cliquei no endereço disponibilizado para o
horário.
Caí na reunião em andamento.
Eu não podia mais sair.
Todas as pessoas estavam com suas
câmeras abertas. A professora falava de sua preocupação com a ansiedade da criança
e sua percepção da ansiedade da mãe também. Estava explícito, pelas falas da
mãe e da professora, que a mãe exigia do filho para que ele tivesse melhores
oportunidades em sua vida quando adulto.
A docente e a mãe são mulheres
negras.
A mãe se recusava a reduzir seu
nível de exigência para com o filho.
Eu pedi a palavra. Pedi, com muita
gentileza, que a mãe me interrompesse, caso sentisse que o dito por mim fosse
inadequado. Afirmei que percebia as condições sociais de sua família como
baixas e que ela se preocupava com o melhor desenvolvimento de seu filho. As
colegas começaram a fechar suas câmeras. Perguntei se ela pensava que as
oportunidades para o menino eram menores da de outras crianças. Ela assentiu. Eu
comecei a lacrimejar. Questionei se ela entendia que sendo melhor na escola,
seu pequeno teria mais condições de competir com pessoas brancas. A mãe mal
conseguiu responder. Eu interpretei a ansiedade da mãe para as colegas como o
resultado do preconceito racial sofrido pela mãe e sua exigência sobre o filho
como uma proteção para enfrentar tal mal social. Informei às participantes que
não podíamos orientar a mãe a agir de modo diferente, pois ela assim agia da
melhor forma em benefício de sua família.
As colegas abriram suas câmeras
com seus narizes molhados e olhos inchados. A reunião estava encerrada.
Eu conclui que não estava
preparada para orientar famílias de pessoas negras.
A psicologia que aprendemos na
faculdade é desenvolvida por e para pessoas brancas[1]. Durante meus cinco anos
de formação, quase três de mestrado, vinte anos de formação continuada e experiência
laboral, nunca tive uma palestra sobre cuidados diferenciados com a população
negra. A forma de estar no mundo para pessoas negras é diferente da forma dos brancos
e, por isto, as orientações psicológicas oferecidas para uma família negra não
podem ser as mesmas que as indicadas para uma família branca. Fazer isto é escamotear
a desigualdade racial e social que vivemos cotidianamente.
Por perceber isto, busquei por
colegas negras que trabalhavam em outras escolas para me informarem sobre suas
vidas, o que enfrentavam, como lidavam com as diferenças, como foram educadas,
preparadas e protegidas por suas famílias. A primeira, uma professora jovem,
afirmou que também estava pesquisando e que não podia informar quais autore/as
buscar. A segunda, uma pedagoga de EEAA[2] não se sentia alvo de
preconceito racial por ser filha de pai militar e sempre ter convivido entre
iguais independente de cor de pele.
Iniciei uma busca frenética nas lifes
que se tornaram tão frequentes durante o período de isolamento. Assisti à
palestra de GOG para o colégio Centrão de São Sebastião. Ele falou sobre a forma
de expressão possível das periferias: a música, o Rap.
Assisti a simpósios e
conferências, inclusive ao I Congresso de Futurologia Negra. O/as intelectuais
negra/os indicaram muitos expoentes em diversas áreas da ciência: Cida Bento,
Franz Fanon, Suely Carneiro, Abdias do Nascimento, Milton Santos, Lélia Gonzalés,
Grada Kilomba. Adquiri livros citados e estudei RAPs, programas de entrevistas,
como Mano a Mano de Mano Brown; Vidas Negras de Tiago Rogero.
Os livros O Racismo e o Negro no
Brasil, organizado por Noemi M. Kon, Maria Lúcia da Silva e Cristiane C. Abud e
Memórias da Plantação de Grada Kilomba me provocaram muitas reflexões e um
projeto de intervenção na comunidade escolar que denominei Sensibilização
Antirracista.
A partir da minha experiência e do
silêncio da escola sobre o assunto, das críticas que a/os autora/es traziam, eu
entendi que é necessária uma ação incisiva.
Enquanto eu pensava em como discutir
questões raciais na escola, uma mãe me procurou para solicitar intervenções porque
sua filha estava sofrendo ataques racistas de estudantes na escola. Compreendi
que urgia agir. Comecei a receber o grupo de meninas envolvidas nos assédios racistas
fazendo-as se entenderem, se conhecerem, se aceitarem. Paulatinamente, fomos
tratando de diferenças de religião (sim, houve ofensas envolvendo esta área),
de classe social, de raça, de corpo físico.
O aprendizado que estas crianças
me propiciaram me fortaleceu para eu enfrentar meus medos e realizar o projeto
que já estava todo pronto para ser implementado.