segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Lidando com racismo institucional

 Em 2010, recebi o encaminhamento de uma criança para ser avaliada por dificuldade de aprendizagem. O menino não apresentava nenhum sinal de problema. Convoquei a mãe para aprofundar o estudo. Ao final de uma hora de entrevista, eu ainda não havia percebido qualquer questão que pudesse indicar uma pista para a superação do problema observado pela professora. Desfoquei o assunto da criança passando a tratar sobre a família e seu meio, como eram tratados pelas demais pessoas, quais eram suas dificuldades por serem negros.

A mãe baixou o olhar. Eu insisti. “Por favor, me ensine. Se vocês não disserem, nós não saberemos.” A mãe respondeu: “Quando eu passo, as pessoas puxam a bolsa.” Fiquei envergonhada. Pedi desculpas por trazer aquele assunto.

A partir desta entrevista, passei a prestar atenção nas pessoas nos ambientes em que me encontrava. Passei a censurar meus julgamentos, cuidar de minhas ações impensadas relacionadas a pessoas negras.

Em uma greve geral em 2016, durante a manifestação, recebi uma aula do professor João Nogueira sobre colorismo. “Quanto mais escura a pele, mais preconceito sofre a pessoa. Pessoas brancas não devem se dizer negras porque não sofrem discriminação.”

Em 2020, durante o isolamento físico devido a estratégia de enfrentamento à pandemia de covid-19, uma de nossas professoras solicitou apoio para atender uma mãe excessivamente rigorosa com o desempenho de seu filho. O menino tinha seis anos. A criança era uma das melhores da turma, participativa e alegre, socializava bem, mas mostrava-se ansiosa.

Por algum motivo que eu não sei precisar, eu não quis participar desta reunião. Informei isto às colegas. Durante aquela manhã, realizei todos os atendimentos agendados rapidamente. Ao buscar mais uma tarefa para fazer, entrei em um dos arquivos compartilhados no qual dispúnhamos os links de reuniões e cliquei no endereço disponibilizado para o horário.

Caí na reunião em andamento.

Eu não podia mais sair.

Todas as pessoas estavam com suas câmeras abertas. A professora falava de sua preocupação com a ansiedade da criança e sua percepção da ansiedade da mãe também. Estava explícito, pelas falas da mãe e da professora, que a mãe exigia do filho para que ele tivesse melhores oportunidades em sua vida quando adulto.

A docente e a mãe são mulheres negras.

A mãe se recusava a reduzir seu nível de exigência para com o filho.

Eu pedi a palavra. Pedi, com muita gentileza, que a mãe me interrompesse, caso sentisse que o dito por mim fosse inadequado. Afirmei que percebia as condições sociais de sua família como baixas e que ela se preocupava com o melhor desenvolvimento de seu filho. As colegas começaram a fechar suas câmeras. Perguntei se ela pensava que as oportunidades para o menino eram menores da de outras crianças. Ela assentiu. Eu comecei a lacrimejar. Questionei se ela entendia que sendo melhor na escola, seu pequeno teria mais condições de competir com pessoas brancas. A mãe mal conseguiu responder. Eu interpretei a ansiedade da mãe para as colegas como o resultado do preconceito racial sofrido pela mãe e sua exigência sobre o filho como uma proteção para enfrentar tal mal social. Informei às participantes que não podíamos orientar a mãe a agir de modo diferente, pois ela assim agia da melhor forma em benefício de sua família.

As colegas abriram suas câmeras com seus narizes molhados e olhos inchados. A reunião estava encerrada.

Eu conclui que não estava preparada para orientar famílias de pessoas negras.

A psicologia que aprendemos na faculdade é desenvolvida por e para pessoas brancas[1]. Durante meus cinco anos de formação, quase três de mestrado, vinte anos de formação continuada e experiência laboral, nunca tive uma palestra sobre cuidados diferenciados com a população negra. A forma de estar no mundo para pessoas negras é diferente da forma dos brancos e, por isto, as orientações psicológicas oferecidas para uma família negra não podem ser as mesmas que as indicadas para uma família branca. Fazer isto é escamotear a desigualdade racial e social que vivemos cotidianamente.

Por perceber isto, busquei por colegas negras que trabalhavam em outras escolas para me informarem sobre suas vidas, o que enfrentavam, como lidavam com as diferenças, como foram educadas, preparadas e protegidas por suas famílias. A primeira, uma professora jovem, afirmou que também estava pesquisando e que não podia informar quais autore/as buscar. A segunda, uma pedagoga de EEAA[2] não se sentia alvo de preconceito racial por ser filha de pai militar e sempre ter convivido entre iguais independente de cor de pele.

Iniciei uma busca frenética nas lifes que se tornaram tão frequentes durante o período de isolamento. Assisti à palestra de GOG para o colégio Centrão de São Sebastião. Ele falou sobre a forma de expressão possível das periferias: a música, o Rap.

Assisti a simpósios e conferências, inclusive ao I Congresso de Futurologia Negra. O/as intelectuais negra/os indicaram muitos expoentes em diversas áreas da ciência: Cida Bento, Franz Fanon, Suely Carneiro, Abdias do Nascimento, Milton Santos, Lélia Gonzalés, Grada Kilomba. Adquiri livros citados e estudei RAPs, programas de entrevistas, como Mano a Mano de Mano Brown; Vidas Negras de Tiago Rogero.

Os livros O Racismo e o Negro no Brasil, organizado por Noemi M. Kon, Maria Lúcia da Silva e Cristiane C. Abud e Memórias da Plantação de Grada Kilomba me provocaram muitas reflexões e um projeto de intervenção na comunidade escolar que denominei Sensibilização Antirracista.

A partir da minha experiência e do silêncio da escola sobre o assunto, das críticas que a/os autora/es traziam, eu entendi que é necessária uma ação incisiva.

Enquanto eu pensava em como discutir questões raciais na escola, uma mãe me procurou para solicitar intervenções porque sua filha estava sofrendo ataques racistas de estudantes na escola. Compreendi que urgia agir. Comecei a receber o grupo de meninas envolvidas nos assédios racistas fazendo-as se entenderem, se conhecerem, se aceitarem. Paulatinamente, fomos tratando de diferenças de religião (sim, houve ofensas envolvendo esta área), de classe social, de raça, de corpo físico.

O aprendizado que estas crianças me propiciaram me fortaleceu para eu enfrentar meus medos e realizar o projeto que já estava todo pronto para ser implementado.



[1] Bento, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

[2] O meu setor de serviço junto à Secretaria de Estado de Educação do DF.

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