Durante um recreio comum, observei uma menina entrar na escola entristecida, chorosa. As lágrimas não lhe caíam, mas a mágoa era patente. Chamei-lhe, não respondeu. Seguiu seu caminho. Fui-lhe ao encalço. Esta criança (P.) foi-me encaminhada há dois anos devido ao seu comportamento viril. Este adjetivo já foi considerado masculino. Por que motivo ele seria exclusivo do gênero masculino, questionaram intelectuais feministas.
A virilidade se refere à pulsão na direção da atividade, da alegria, da realização, do movimento, força, vigor, coragem. Trata-se da energia necessária para a vida. Por que tais características se restringiriam apenas a homens?
Sempre protegi as crianças sob minha tutela quanto a seu modo idiossincrático de agir. Observei P. para compreendê-la e protegê-la do enquadramento geral proporcionado pela escola. Por tê-la observado atentamente, soube que havia algo muito errado com ela naquele momento.
Sentei-me ao seu lado. As profissionais da escola já se acostumaram com minhas intervenções nos corredores e não interrompem quando estou atenta a uma criança. Assim que iniciou seu relato ("É porque..."), as lágrimas lhe saltaram.
Sejam adultos ou crianças, jamais interrompo lágrimas por gestos, palavras, solicitações, interjeições ou expressões faciais. Quando eu não consigo entender a fala, informo que seu pranto é permitido e que terei tempo para ouvir tanto o choro quanto o relato. Quando sinto que o mais forte da emoção foi exposto, me movimento lentamente e ofereço lenços de papel quando disponíveis. Ao final de toda a conversa, levo as crianças para lavar o rosto no banheiro e assoar o nariz. Este movimento de limpeza apoia a reorganização da pessoa para retornar ao convívio social e às atividades cotidianas consecutivas.
P: -- É porque os meninos foram rudes comigo e não quiseram deixar eu jogar com eles.
V: -- Sim. Entendo seu choro. Como eles foram rudes, o que fizeram?
P: -- Eles jogaram a bola em mim.
V: -- Do nada?
P: -- Não. Eles estavam jogando vôlei e cortaram a bola em mim com força.
V: -- Eita! Mas onde você estava? Você estava jogando com eles?
P: -- Não.
Vemos que há uma incongruência aqui, certo?
V: -- Hum. Eu não entendi bem. Pode me explicar novamente?
Enquanto a criança explica, vai se conscientizando do que realmente houve porque tem que fechar o relato de modo coerente para que a outra pessoa o compreenda. Enquanto fala, elabora; enquanto elabora, se acalma; quando se acalma, explica melhor e compreende o que houve. Esta técnica que envolve a escuta plena, o acolhimento e a aceitação total da pessoa integralmente possibilita o ensino do afastamento da emoção, sua observação ativa e certa análise para posterior tomada de decisão consciente.
Após a explicação de P., fomos conversar com os meninos envolvidos. À vista da colega ao meu lado, a roda de pequenos se mostrou alerta. Depois da apresentação do caso, um dos colegas, o mais atento, pediu para explicar o que aconteceu. P. não estava jogando, mas andava no meio da roda atrapalhando a brincadeira. Eu os repreendi porque foram agressivos e a machucaram. E repeti nossa cantilena educativa: a violência nunca é justificada.
Os meninos pediram desculpas. Convidaram-na para o jogo e ela recusou.
Logo o recreio acabou, eu relatei o ocorrido sucintamente à professora enquanto ela retornava à sala de aula. P. me procurou. Disse que estava tudo bem e que havia pedido desculpas aos colegas. Oi? Foi agredida e pediu desculpas? Será que mesmo tão nova esta criança já se coloca no lugar de desculpar-se por ser magoada? P. explicou que, enquanto os meninos brincavam, ela passava e parava no meio da roda para atrapalhá-los propositalmente. Por causa do seu comportamento perturbador, eles começaram a jogar a bola nela de modo a retirá-la do lugar.
Mostrei-lhe o quanto seu comportamento de pedir desculpas aos colegas foi nobre porque houve um entendimento de causa e efeito por parte dela. Mesmo assim, pontuei, eles não poderiam tê-la agredido. Indiquei a importância de perceber-se implicante ou provocativa e evitar disputas, discórdias e agressões. Orientei sobre o lugar feminino de deslocar-se para o centro, ter a mesma importância que os homens e saber se defender e a/em quem buscar auxílio para manter-se íntegra.
Este caso nos mostra o que um tempo curto oferecido a uma criança pode gerar em desenvolvimento para ela, para nossa experiência laboral e para a ciência. P. extrapolou o que eu lhe ofereci e me retornou com um aprendizado apurado.
Este atendimento de minutos gerou uma aproximação carinhosa e respeitosa entre mim e esta estudante. Ela é talentosa em vários sentidos, mas tem desenvolvido compaixão por outras pessoas de uma linda forma.
É muito bonito acompanhar o desenvolvimento de crianças em seu ambiente natural.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua mensagem ajudará a melhorar este sítio e nosso desempenho profissional.
Grata por comentar!