A busca por embasamento teórico e experiencial para orientar a comunidade escolar a qual sirvo me nutriu com excelentes palestras, textos, livros, programas de entrevistas e narrações, músicas, romances. Estudando, me percebi envolvida na dor do passado e do presente de grande parte da população do nosso país. Durante a leitura de O Racismo e o Negro no Brasil[1], tive a ideia de usar algumas frases impactantes para provocar a conscientização das minhas professoras quanto ao racismo cotidiano. Comecei a marcar trechos dos textos que estudava para apresentar às professoras via aplicativo de mensagens para celulares WhatsApp.
Pensando em
qual fundo poderia utilizar para dispor os trechos, escolhi uma foto da copa de
uma árvore em dia de Sol que eu mesma tirei. A substituição constante e sutil
que ocorre das folhas me suscitou a possibilidade de supressão do racismo a
partir do entendimento do fenômeno, a conscientização de seu mecanismo, a
identificação de suas manifestações, a percepção de ações racistas em si
mesmo/a com ampliação para palavras e pensamentos, passando a autovigilância
para evitar atos racistas e chegando a ação antirracista, a defesa de pessoas
sofrendo racismo. Esta foto foi utilizada como fundo das frases escolhidas e
foi mantida ao longo de toda a execução do projeto como marca de identificação.
Todos os textos foram escritos por intelectuais negro/as. Assim, eu estaria conservando o protagonismo e oferecendo público para ele/as.
Solicitei
autorização das editoras para utilização dos textos e as consegui mediante
referência em cada postagem.
Enquanto este
processo acontecia, eu li Memórias da Plantação de Grada Kilomba. A força desta
obra me levou a associar sua leitura às postagens semanais dos trechos de
textos. As leituras seriam feitas por mim nas reuniões de coordenação coletivas
semanais das professoras, para a/os servidore/as da alimentação e de manutenção
e limpeza abarcado o máximo de servidores da escola possível.
Os trechos
escolhidos foram retirados dos textos listados a seguir:
As
ambiguidades do racismo à brasileira de Kabengele Munanga1;
Dessemelhanças
e preconceitos de Heidi Tabacof1;
A violência
nossa de cada dia: o racismo à brasileira de Maria Beatriz Costa Carvalho
Vannuchi1;
Racismo no
Brasil: questões para psicanalistas brasileiros de Maria Lúcia da Silva1;
Pele negras, máscaras
brancas de Frantz Fanon.
Os parágrafos
destacados mostram a força dos trechos veiculados semanalmente para a
comunidade escolar:
“Somos todos,
brasileiros, tanto brancos como negros ou de qualquer outra coloração, afetados
pelos crimes do passado e os atuais. Mas, como pensar os efeitos mortíferos do
pensamento racista sobre a subjetividade dos negros?” (Vannucci, p. 67)
E
“O judeu só
não é amado a partir do momento em que é detectado. Mas comigo tudo toma um
aspecto novo. Nenhuma chance me é oferecida. Sou sobredeterminado pelo
exterior. Não sou escravo da ‘ideia’ que os outros fazem de mim, mas da minha
aparição.” (Fanon, p. 108)
As postagens
semanais foram feitas ao longo do ano com interrupção apenas no recesso de
julho. A penúltima postagem trazia o texto vazio indicando o silêncio. O
silêncio com que tratamos o racismo de nossas ações corriqueiras, automáticas,
inconscientes. A última postagem, feita no dia 20 de novembro de 2024, pela
primeira vez marcado como feriado nacional, trazia o seguinte texto:
“Nós não
podemos calar sobre o racismo, pois ele viola o principal direito de pessoas
negras: o direito de existir.”
No início da
execução do projeto, em abril, uma das mães de crianças atendidas por mim,
durante uma reunião de famílias, indicou a falta de protagonismo negro. Disse
Silvânia Caribé que tratar apenas de racismo induz o sentimento de pena. Isto
não valoriza as pessoas negras. Era necessário mostrar as contribuições de
pessoas negras, expor figuras para as crianças da escola se mirarem, se
inspirarem. Assim nasceu a terceira seção deste projeto.
Grandes intelectuais
de renome internacional tiveram suas imagens e um resumo de suas biografias
estampadas no portão de entrada da escola e, em seguida, colecionadas em um
mural permanente denominado Personalidades Negras. Os cartazes com fotos
coloridas impressas em papel A3 ficaram disponíveis à/os professora/es durante
todo o período. As docentes foram incentivadas a indicar intelectuais para
compor o projeto e trabalhar as figuras em suas aulas.
As pessoas
retratadas foram Antonieta de Barros, Sueli Carneiro, Maria Felipa, Milton
Santos, Nego Bispo, Lélia Gonzalez, André Rebolças, Luiz Gama, Abdias do
Nascimento, Lia de Itamaracá. Estas fotografias foram colhidas na internet e
permaneciam expostas no portão da escola por sete dias. Cada imagem foi
substituída por outra personalidade ao final do período.
O objetivo do
projeto Sensibilização Antirracista está contido no texto de Maria Lúcia da
Silva: “A manutenção ou a superação do racismo no Brasil, e seus efeitos
perversos, depende de uma decisão coletiva, que implica corresponsabilidade. O
propósito de recordar essa história visa à elaboração, na busca de caminhos de
superação.” (2017, p. 74)
Como resultado
deste projeto, podemos indicar a identificação de situações de racismo por
professoras brancas fora do ambiente de trabalho, identificação de
constrangimento enquanto sofrimento causado por racismo por professor/a negro/a;
desconforto apresentado durante as leituras; reconhecimento do próprio racismo
por professoras brancas; identificação de situações de racismo entre estudantes
por professoras; incentivo ao trabalho por parte de familiares de estudantes;
queixa de textos ultrapassados por pai de estudante na reunião de famílias do
3º bimestre; silêncio e expressão facial indicativa de reflexão após a leitura
dos textos de Memórias da Plantação durante as coordenações coletivas de
professoras; solicitação de suspensão da leitura dos textos na primeira
avaliação do projeto após quatro meses de execução.
Certamente que
não houve superação de racismo por parte das pessoas envolvidas pelo projeto relatado.
Os avanços correspondem à superação do silêncio a respeito de comportamentos
violentos que permeiam as relações cotidianamente. Falar sobre o que ninguém quer
falar, sobre o que é proibido tacitamente exige coragem. O eco esperado para se
tratar das questões do racismo não se manifestou. Ninguém se declara racista
sem sofrimento. E enfrentar o sofrimento de ser algoz se mostrou bastante
intenso a ponto da solicitação de suspensão das leituras.
Contentei-me
com a primeira menção de identificação de situação de racismo descrita por uma
colega pedagoga. O título do projeto é realizado quando as pessoas pensam sobre
o assunto.