sábado, 15 de fevereiro de 2025

Sensibilização Antirracista

        A busca por embasamento teórico e experiencial para orientar a comunidade escolar a qual sirvo me nutriu com excelentes palestras, textos, livros, programas de entrevistas e narrações, músicas, romances. Estudando, me percebi envolvida na dor do passado e do presente de grande parte da população do nosso país. Durante a leitura de O Racismo e o Negro no Brasil[1], tive a ideia de usar algumas frases impactantes para provocar a conscientização das minhas professoras quanto ao racismo cotidiano. Comecei a marcar trechos dos textos que estudava para apresentar às professoras via aplicativo de mensagens para celulares WhatsApp.

Pensando em qual fundo poderia utilizar para dispor os trechos, escolhi uma foto da copa de uma árvore em dia de Sol que eu mesma tirei. A substituição constante e sutil que ocorre das folhas me suscitou a possibilidade de supressão do racismo a partir do entendimento do fenômeno, a conscientização de seu mecanismo, a identificação de suas manifestações, a percepção de ações racistas em si mesmo/a com ampliação para palavras e pensamentos, passando a autovigilância para evitar atos racistas e chegando a ação antirracista, a defesa de pessoas sofrendo racismo. Esta foto foi utilizada como fundo das frases escolhidas e foi mantida ao longo de toda a execução do projeto como marca de identificação.

                         Foto da autora.

Todos os textos foram escritos por intelectuais negro/as. Assim, eu estaria conservando o protagonismo e oferecendo público para ele/as.

Solicitei autorização das editoras para utilização dos textos e as consegui mediante referência em cada postagem.

Enquanto este processo acontecia, eu li Memórias da Plantação de Grada Kilomba. A força desta obra me levou a associar sua leitura às postagens semanais dos trechos de textos. As leituras seriam feitas por mim nas reuniões de coordenação coletivas semanais das professoras, para a/os servidore/as da alimentação e de manutenção e limpeza abarcado o máximo de servidores da escola possível.

Os trechos escolhidos foram retirados dos textos listados a seguir:

As ambiguidades do racismo à brasileira de Kabengele Munanga1;

Dessemelhanças e preconceitos de Heidi Tabacof1;

A violência nossa de cada dia: o racismo à brasileira de Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi1;

Racismo no Brasil: questões para psicanalistas brasileiros de Maria Lúcia da Silva1;

Pele negras, máscaras brancas de Frantz Fanon.

Os parágrafos destacados mostram a força dos trechos veiculados semanalmente para a comunidade escolar:

“Somos todos, brasileiros, tanto brancos como negros ou de qualquer outra coloração, afetados pelos crimes do passado e os atuais. Mas, como pensar os efeitos mortíferos do pensamento racista sobre a subjetividade dos negros?” (Vannucci, p. 67)

E

“O judeu só não é amado a partir do momento em que é detectado. Mas comigo tudo toma um aspecto novo. Nenhuma chance me é oferecida. Sou sobredeterminado pelo exterior. Não sou escravo da ‘ideia’ que os outros fazem de mim, mas da minha aparição.” (Fanon, p. 108)

As postagens semanais foram feitas ao longo do ano com interrupção apenas no recesso de julho. A penúltima postagem trazia o texto vazio indicando o silêncio. O silêncio com que tratamos o racismo de nossas ações corriqueiras, automáticas, inconscientes. A última postagem, feita no dia 20 de novembro de 2024, pela primeira vez marcado como feriado nacional, trazia o seguinte texto:

“Nós não podemos calar sobre o racismo, pois ele viola o principal direito de pessoas negras: o direito de existir.”

No início da execução do projeto, em abril, uma das mães de crianças atendidas por mim, durante uma reunião de famílias, indicou a falta de protagonismo negro. Disse Silvânia Caribé que tratar apenas de racismo induz o sentimento de pena. Isto não valoriza as pessoas negras. Era necessário mostrar as contribuições de pessoas negras, expor figuras para as crianças da escola se mirarem, se inspirarem. Assim nasceu a terceira seção deste projeto.

Grandes intelectuais de renome internacional tiveram suas imagens e um resumo de suas biografias estampadas no portão de entrada da escola e, em seguida, colecionadas em um mural permanente denominado Personalidades Negras. Os cartazes com fotos coloridas impressas em papel A3 ficaram disponíveis à/os professora/es durante todo o período. As docentes foram incentivadas a indicar intelectuais para compor o projeto e trabalhar as figuras em suas aulas.

As pessoas retratadas foram Antonieta de Barros, Sueli Carneiro, Maria Felipa, Milton Santos, Nego Bispo, Lélia Gonzalez, André Rebolças, Luiz Gama, Abdias do Nascimento, Lia de Itamaracá. Estas fotografias foram colhidas na internet e permaneciam expostas no portão da escola por sete dias. Cada imagem foi substituída por outra personalidade ao final do período.

O objetivo do projeto Sensibilização Antirracista está contido no texto de Maria Lúcia da Silva: “A manutenção ou a superação do racismo no Brasil, e seus efeitos perversos, depende de uma decisão coletiva, que implica corresponsabilidade. O propósito de recordar essa história visa à elaboração, na busca de caminhos de superação.” (2017, p. 74)

Como resultado deste projeto, podemos indicar a identificação de situações de racismo por professoras brancas fora do ambiente de trabalho, identificação de constrangimento enquanto sofrimento causado por racismo por professor/a negro/a; desconforto apresentado durante as leituras; reconhecimento do próprio racismo por professoras brancas; identificação de situações de racismo entre estudantes por professoras; incentivo ao trabalho por parte de familiares de estudantes; queixa de textos ultrapassados por pai de estudante na reunião de famílias do 3º bimestre; silêncio e expressão facial indicativa de reflexão após a leitura dos textos de Memórias da Plantação durante as coordenações coletivas de professoras; solicitação de suspensão da leitura dos textos na primeira avaliação do projeto após quatro meses de execução.

Certamente que não houve superação de racismo por parte das pessoas envolvidas pelo projeto relatado. Os avanços correspondem à superação do silêncio a respeito de comportamentos violentos que permeiam as relações cotidianamente. Falar sobre o que ninguém quer falar, sobre o que é proibido tacitamente exige coragem. O eco esperado para se tratar das questões do racismo não se manifestou. Ninguém se declara racista sem sofrimento. E enfrentar o sofrimento de ser algoz se mostrou bastante intenso a ponto da solicitação de suspensão das leituras.

Contentei-me com a primeira menção de identificação de situação de racismo descrita por uma colega pedagoga. O título do projeto é realizado quando as pessoas pensam sobre o assunto.