Quem trabalha ou já trabalhou com criança pequena percebeu o
quanto é repetitivo o comportamento deles em informar às professoras acerca das
ações dos demais. Quando as crianças têm idade de entrar para a escola, já
aprenderam sobre comportamentos certos e errados. Eles sabem perfeitamente
identificá-los e justificá-los.
Parece até natural que os pequenos venham de cinco em cinco
minutos dizer à autoridade local que este ou aquele colega fez isto ou aquilo
que não deve ser feito. Esta ação, no entanto, é muito combatida nas escolas em
que atuo ou atuei.
Sim, há momentos em que as crianças interrompem a aula para
“dedurar” os colegas. A medida em que o tempo passa, as coibições são tão
frequentes que o comportamento cede. A vigilância constante é muito percebida
nos jardins de infância (crianças de três a cinco anos).
Ela ocorre também quando um aluno é repreendido. Neste caso,
o pequeno aponta todos os colegas que estão fazendo algo como ele ou que já
fizeram e quando. Há, entretanto, duas formas pelo menos de explorarmos esta
ação.
A indicação de comportamento impróprio por parte de uma
criança força uma ação do adulto. Significa uma solicitação de providência, um
pedido de ajuda ou justiça. Assim, à professora é exigido afastar-se do seu
fazer presente e tomar uma atitude em relação àquele pedido.
Se a professora atende a cada pedido destes, sua aula ficará
bastante interrompida porque manter a atenção de vinte pessoas ao mesmo tempo
não é nada fácil. Mais grave é pensar que o atendimento de cada pedido aumenta
a probabilidade de novas solicitações por parte de toda a turma: a frequência
do comportamento vai aumentar.
O comum é o adulto repreender a criança dedo-duro
alertando-a do desconforto que seu comportamento trás para a professora e para
o colega objeto. A ação é classificada como inconveniente, chata, fofoca. Em
geral, se oferece a alternativa da/o pequena/o se focar em sua própria tarefa e
não atentar para o que fazem os demais, incentivando-se assim o individualismo
e a omissão.
Se um coleguinha risca a carteira na escola, uma criança de
quatro anos logo chama a professora. Mas se nós, adultos, notamos alguém
riscando um dos muros do nosso bairro, como deveremos agir?
Assistindo aos noticiários atuais, percebo os avanços em
investigações policiais que utilizam a delação premiada. Ora, o que foi coibido
por gerações agora é tratado como auxílio ao Estado. E, se pensarmos que o
Estado somos nós, então o que nos foi ensinado a vida inteira como errado é, de
fato, certo. Ou era errado e agora é certo? Ou é errado e a justiça nos premia
por agirmos erroneamente?
Se a delação premiada beneficia investigações criminais,
será que as professoras devem agir de modo diferente com seus alunos? Ou será
que a justiça dos adultos não se relaciona com as ações na pré-escola? Será que
um interrogatório em CPI não interfere na pedagogia?
Eu, particularmente, sou adepta da informação. Acho até que,
sendo psicóloga, devo ser assim porque quanto mais ouvimos, mais condições
temos de ajudar nossos clientes. Penso que uma sociedade em que todos somos
fiscais uns dos outros funcionará melhor do que esta em que uma pessoa joga
papel no chão ou fura um sinal e todos os outros fingem que não estão vendo.
Implicar-se em suas ações, preocupar-se em não perturbar a
vida da pessoa ao lado, cuidar, zelar o bem público podem ser atitudes
benéficas para o desenvolvimento desta sociedade.
Quando a professora diz ao seu pequeno aluno: “Já falei pra
você se ocupar com a sua tarefa. Eu cuido da turma.”, ela diz também: “Só o que
eu vejo importa.” Todos os alunos aprendem, assim, que fazer o proibido sem ser
visto é permitido. Logo, cometer ato ilícito legalmente enquanto adulto não
envolve nenhum problema, desde que ninguém veja e, se vir, quem sabe uma
conversa resolve. “Talvez um cafezinho?”
Entendo que, sendo todos fiscais, as ações impróprias serão
reduzidas até que a necessidade de fiscalização diminua intensamente. E não há
risco da escola ficar enfadonha por este motivo: há muito mais coisas
permitidas que proibidas.
Lembrando que uma premiação para as crianças muitas vezes é
apenas uma palavra ou um gesto afetuoso.
Então as duas formas que exploro aqui ao interpretar esta
questão são seguirmos nos omitindo e individualistas não prestando socorro
quando algo vai mal ou respeitamos nosso co-cidadão que nos alerta sobre um
comportamento indevido nosso. Talvez o grande clamor por mais segurança pública
passe por este caminho. Uma rota de mais atenção um com os outros, com mais
compaixão e solidariedade, em uma sociedade em que não seja necessário gritar
“fogo” para receber ajuda em caso de assalto ou ameaça de estupro, como é
orientado por policiais. Uma cultura onde um pedido de socorro seja ouvido e
atendido prontamente ao invés de ser interpretado como sinal de risco de morte
e fuga instantânea.