Por
mais que estudemos as emoções humanas para sabermos como acolher quando elas
acometerem a/os nossa/os clientes, não existe nenhuma preparação possível para
evitar a potência de seu arrebatamento seja em nós mesmas, seja em outras
pessoas.
Perder
um/a estudante é algo impactante. Mesmo pessoas que não conviveram diretamente
com aquela criança são tomadas pela tristeza. Sempre pensamos na família que
perdeu um ente. E a morte de uma criança parece provocar um luto ainda mais
pungente. O substantivo pesar é muito adequado.
O
arrebatamento da notícia de morte retira a energia direcionada à ação. Existem
muitas coisas que precisam ser feitas, mas o ensimesmamento toma conta de nós.
Esta reação de não-reação faz todo o sentido na economia emocional humana,
principalmente em nossa cultura. Ficar conosco mesmos, vivenciar esta emoção
ruim, esta tristeza é importante para que consigamos superá-la mais
rapidamente. Entrar em contato com a dor da perda é imprescindível porque
evitar lidar com este sofrimento, também evita sua superação, o aprendizado, a
experiência. E uma vivência ruim impinge à esquiva. É importante que nós
tenhamos coragem de vivenciar cada experiência.
Quando
estamos em uma escola, toda/os a/os adulta/os precisam estar presentes para
auxiliar as crianças que ainda não entendem o que significa uma perda. Cada
pessoa tem a sua vivência e, a partir dela, irá experimentar a situação de
forma diferente. Cada professor/a vai receber e mediar o sofrimento de suas
crianças de forma única. As crianças vivenciam o luto de um modo menos intenso
que a/o adulta/o, menos doloroso porque têm menos tempo de vida; não têm ainda
condição de entender o quão profunda é uma perda permanente; a comparação
necessária para uma compreensão da extensão do ocorrido ainda não tem seu
lastro. Com isto não quero dizer que ela não sofra, mas, assim como com a
passagem do tempo, as crianças têm pouca experiência para compreender o que a perda
de uma vida tão precocemente significa para a comunidade inteira. Quem é
adulta/o terá compaixão dos entes familiares, da mãe principalmente, da
professora, das colegas mais próximas da criança falecida. É bastante provável
que uma criança não tenha toda esta dimensão de pesar. Ainda assim, todo o
grupo de estudantes precisa de apoio.
Nós
estamos vivendo esta situação em nossa escola neste momento.
Eu,
enquanto psicóloga escolar, sofri a perda desta criança de sete anos. Eu me
coloquei no lugar de acolher todas as pessoas que estavam presentes quando
recebemos a notícia e sustentar a direção da escola quanto às providências
necessárias que uma morte envolve: elaboração de um texto para informar a
comunidade escolar, comunicação do ocorrido à/os colegas em desempenho de suas
atividades normais, apoio à decisão de suspensão das aulas, acolhimento das
colegas em suas demonstrações emocionais, identificação de situações críticas
como a impossibilidade de prosseguimento em aula por parte de algum/a docente ou
percepção de resistências quanto ao arrebatamento provocado pela notícia em si
mesma, atenção ao grupo de crianças que tinha contato com a ausente mesmo não
sendo de sua turma, preparação de atividade para acolher a emoção das crianças
da turma que sofreu a perda de um ente com a permissão da expressão da ausência
da estudante perdida da forma própria de cada um/uma, proteção que emoções
desnecessárias atinjam as crianças, atenção para arrebatamentos por profissionais
em relação à/os estudantes que permaneceram, acolhimento das famílias
envolvidas ou impactadas pelo luto ou pela notícia.
Uma
morte em uma escola, a morte de um/a estudante é possível acontecer porque a
finitude é um fenômeno da condição humana. Eu afirmo comumente que nós
precisamos estar preparadas para eventos, mas uma morte numa escola é algo
pungente e não existe preparação possível para um evento de tal monta.
Enquanto
estudamos psicologia organizacional, não analisamos as possibilidades de lida
com o luto por perda de colegas de trabalho. Entretanto é possível que ocorra.
Quais são as possibilidades de atuação por parte de um/a psicóloga/o em uma
organização? Uma alternativa é se mostrar aberta/o para acolher a dor da/os
colegas que ali estão, se disponibilizar estando atenta/o à própria emoção,
vivenciá-la como é possível. Às vezes, a forma possível é se blindar e esperar
o melhor momento para viver a sensação posteriormente, na própria terapia ou em
um momento de tranquilidade fora do trabalho. Pode ser que a/o profissional
desabe ali na frente da/os colegas e, na sequência, consiga acolher a/os demais,
após vivenciar com intensidade a sua dor. É importante que nós tenhamos este
espaço de humanidade. E, se as pessoas não compreenderem que nós somos humanas
como elas, paciência. Também é possível que nós façamos as duas coisas ao mesmo
tempo: que expressemos o nosso sentimento e acolhamos simultaneamente. Há quem
se feche e não experiencie a dor. E quantas outras possibilidades pode haver
que não me vêm à mente no momento. Encaminhamentos podem ser feitos enquanto
vivenciamos a morte de um colega no ambiente de trabalho. É possível que
percamos alguns sinais de dor em nossos colegas. Pode acontecer ainda que
tenhamos ideias excelentes quando o momento de agir passar.
Quando a
finitude acontece com uma criança, as nossas crenças podem ser abaladas.
Enquanto servidoras públicas, nós não podemos oferecer para a/os nossas/os
estudantes uma justificativa que tenha cunho religioso. Isto porque a nossa
instituição é proibida de se valer de argumentos desta ordem. Podemos afirmar
que a vida contém a morte. Apesar de parecer simples, uma confusão pode se
apresentar em um momento questionador por parte de si mesma/o ou por parte de
um/a infante. A resposta pessoal surge de forma espontânea e invade o discurso.
Esta vigilância precisa estar presente para evitar que incorramos em condutas
ilegais considerando a laicidade do Estado, do qual somos agentes. Lidar com o
insondável, o intransponível da morte, o limite que este fenômeno nos impõe faz
com que a nossa empáfia de humanos – de sermos fortes, de conseguirmos nos
adaptar a qualquer lugar, de estarmos presentes em todos os ambientes da
superfície do planeta – seja menor, se restrinja. A finitude nos mostra que nós
não somos deusa/es, que nós fazemos parte da Terra e que talvez não sejamos
importantes. Nós não conseguimos perceber que nossa permanência se faz pela
espécie a qual pertencemos. Passamos por muitas dificuldades durante nossa
existência enquanto espécie, mas continuamos mesmo sendo tão frágeis. Eu repito
este pensamento sobre a fragilidade humana. A fortaleza de nossa espécie passa
pela alta adaptabilidade, mas nós não somos fortes o bastante para
permanecermos individualmente.
Encarar
a finitude de um ente de nossa espécie induz a percepção da nossa delicadeza e
provoca a humildade individual. Este substantivo tem o mesmo radical da palavra
humano: humus, pó, terra. Impermanência. E ao mesmo tempo permanência porque
tudo o que morre alimenta o que está vivo e o que viverá futuramente. Este
pensamento é belo. Se nós conseguirmos alcançar esta beleza talvez nós
consigamos superar a grande tristeza que a finitude nos impõe. Em momentos de
acolhimento, famílias de estudantes indicaram suas reflexões acerca da
valorização de suas crianças, de momentos de comunhão, a necessidade de reduzir
o ritmo de vida tão agitado da modernidade para estar mais próximas de
amiga/os, de vivenciar momentos simples sem pretensões, objetivos ou
obrigações.
Neste
momento de dor, seria bom ter uma crença que pudesse justificar a perda de uma
criança de sete anos. Uma linda menina doce, inteligente, gentil, amada,
engraçada... e, mesmo que fosse peralta ou de comportamento difícil, de
temperamento hostil, a dor que sua ausência nos provoca é indizível.
Viver
um luto neste momento me fez refletir sobre o risco que corremos durante o
isolamento físico. No auge da pandemia de covid-19, nós não perdemos nenhuma
criança, nenhuma colega de trabalho. Eu cheguei a pedir a uma família que não
trouxesse o filho que estava no grupo de risco de morte por covid-19. Solicitei
que mantivessem a criança em casa porque minha equipe não tinha condições
emocionais de lidar com o sofrimento advindo da perda de uma criança naquele
momento devido ao próprio abatimento que o isolamento nos impunha. Hoje,
vivendo este luto, eu fico mais segura de ter feito a escolha certa por ter
solicitado a conduta de resguardo àquela família.
Nós
estamos conseguindo passar por esta dor, tivemos muita sorte por estar em
campanha salarial que promoveu uma paralisação dos trabalhos de toda a rede
pública de ensino no dia subsequente ao falecimento de nossa estudante. Isto
nos deu uma pequena pausa para nos prepararmos para o acolhimento da turma de
nossa criança morta, nos permitiu um tempo para estarmos conosco mesmas e
elaborarmos minimamente nossas emoções para suportarmos as expressões da/os
colegas de turma da nossa estudante de forma íntegra.
A
elaboração de um falecimento é pessoal e intransferível. Ela precisa ser feita.
Por isto é contraproducente fugirmos da emoção. É importante permitir que cada
pessoa, incluindo as mais novas, faça a sua elaboração.
O
acolhimento que oferecemos intencionou a expressão de todos os indivíduos com
máximo respeito a suas propensões pessoais: choro, a expressão mais básica, sem
elaboração; fala, conforme sua convivência com a ausente; escrita, seja com
elogios, com pedidos ou desejos, palavras ou frases; desenhos, considerando a
intensidade de cada demonstração de afeto. Às crianças, foi oferecido um ritual
muito simples sugerido por uma das mães de estudante da turma: a soltura de
balões brancos no pátio externo da escola. Unimos a expressão das crianças
através de um registro escrito ou desenhado amarrado aos fitilhos das bexigas.
Às mães e pais, convidamos para uma roda de livre expressão nos horários de
saída de aluna/os nos horários matutino e vespertino com participação
espontânea. Às professoras, abrimos o espaço de escuta costumeiro em reunião
semanal.
Possibilitar
a demonstração do pesar para a comunidade escolar foi o objetivo de nossas
ações com cada seguimento. Desta maneira, oferecemos caminhos de elaboração
para a coletividade envolvida como forma de atingir a pacificação emocional de
modo breve e seguro.
Devo acrescentar a fundamentação teórica possível ao se
tratar de um assunto tão devastador como a morte e o luto. A psicologia
hospitalar tem tratado destes temas posto sua proximidade com os momentos
finais. O luto tem fases com sequência mais ou menos fixa. Podemos auxiliar
nossa comunidade indicando emoções que se sucedem em relação à perda sentida de
forma a evitar sustos no manejo das emoções.
Este tema lúgubre precisa ser estudado com mais atenção por psicóloga/os escolares porque temos vivido uma epidemia de suicídio desde a segunda década deste século. Tal fenômeno tem sido observado em nossas escolas de ensino médio principalmente. A quantidade de casos é tamanha que a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal disponibiliza protocolos a serem observados por e com escolas que apresentem tais casos. Estas ações são denominadas de posvenção ao suicídio.
Também é necessário cuidado para não espetacularizar o fenômeno final. Como estamos enfrentando uma epidemia de autoextermínio, qualquer vantagem ou exposição elogiosa pode se tornar um incentivo ao ato extremo. Adolescentes tendem a agir de forma muito impulsiva e costumam ter autoestima rebaixada devido à transformação corporal e à supervalorização do grupo de pertencimento.
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