sábado, 5 de abril de 2025

Sobre luto

    Por mais que estudemos as emoções humanas para sabermos como acolher quando elas acometerem a/os nossa/os clientes, não existe nenhuma preparação possível para evitar a potência de seu arrebatamento seja em nós mesmas, seja em outras pessoas.

    Perder um/a estudante é algo impactante. Mesmo pessoas que não conviveram diretamente com aquela criança são tomadas pela tristeza. Sempre pensamos na família que perdeu um ente. E a morte de uma criança parece provocar um luto ainda mais pungente. O substantivo pesar é muito adequado.

    O arrebatamento da notícia de morte retira a energia direcionada à ação. Existem muitas coisas que precisam ser feitas, mas o ensimesmamento toma conta de nós. Esta reação de não-reação faz todo o sentido na economia emocional humana, principalmente em nossa cultura. Ficar conosco mesmos, vivenciar esta emoção ruim, esta tristeza é importante para que consigamos superá-la mais rapidamente. Entrar em contato com a dor da perda é imprescindível porque evitar lidar com este sofrimento, também evita sua superação, o aprendizado, a experiência. E uma vivência ruim impinge à esquiva. É importante que nós tenhamos coragem de vivenciar cada experiência.

    Quando estamos em uma escola, toda/os a/os adulta/os precisam estar presentes para auxiliar as crianças que ainda não entendem o que significa uma perda. Cada pessoa tem a sua vivência e, a partir dela, irá experimentar a situação de forma diferente. Cada professor/a vai receber e mediar o sofrimento de suas crianças de forma única. As crianças vivenciam o luto de um modo menos intenso que a/o adulta/o, menos doloroso porque têm menos tempo de vida; não têm ainda condição de entender o quão profunda é uma perda permanente; a comparação necessária para uma compreensão da extensão do ocorrido ainda não tem seu lastro. Com isto não quero dizer que ela não sofra, mas, assim como com a passagem do tempo, as crianças têm pouca experiência para compreender o que a perda de uma vida tão precocemente significa para a comunidade inteira. Quem é adulta/o terá compaixão dos entes familiares, da mãe principalmente, da professora, das colegas mais próximas da criança falecida. É bastante provável que uma criança não tenha toda esta dimensão de pesar. Ainda assim, todo o grupo de estudantes precisa de apoio.

    Nós estamos vivendo esta situação em nossa escola neste momento.

    Eu, enquanto psicóloga escolar, sofri a perda desta criança de sete anos. Eu me coloquei no lugar de acolher todas as pessoas que estavam presentes quando recebemos a notícia e sustentar a direção da escola quanto às providências necessárias que uma morte envolve: elaboração de um texto para informar a comunidade escolar, comunicação do ocorrido à/os colegas em desempenho de suas atividades normais, apoio à decisão de suspensão das aulas, acolhimento das colegas em suas demonstrações emocionais, identificação de situações críticas como a impossibilidade de prosseguimento em aula por parte de algum/a docente ou percepção de resistências quanto ao arrebatamento provocado pela notícia em si mesma, atenção ao grupo de crianças que tinha contato com a ausente mesmo não sendo de sua turma, preparação de atividade para acolher a emoção das crianças da turma que sofreu a perda de um ente com a permissão da expressão da ausência da estudante perdida da forma própria de cada um/uma, proteção que emoções desnecessárias atinjam as crianças, atenção para arrebatamentos por profissionais em relação à/os estudantes que permaneceram, acolhimento das famílias envolvidas ou impactadas pelo luto ou pela notícia.

    Uma morte em uma escola, a morte de um/a estudante é possível acontecer porque a finitude é um fenômeno da condição humana. Eu afirmo comumente que nós precisamos estar preparadas para eventos, mas uma morte numa escola é algo pungente e não existe preparação possível para um evento de tal monta.

    Enquanto estudamos psicologia organizacional, não analisamos as possibilidades de lida com o luto por perda de colegas de trabalho. Entretanto é possível que ocorra. Quais são as possibilidades de atuação por parte de um/a psicóloga/o em uma organização? Uma alternativa é se mostrar aberta/o para acolher a dor da/os colegas que ali estão, se disponibilizar estando atenta/o à própria emoção, vivenciá-la como é possível. Às vezes, a forma possível é se blindar e esperar o melhor momento para viver a sensação posteriormente, na própria terapia ou em um momento de tranquilidade fora do trabalho. Pode ser que a/o profissional desabe ali na frente da/os colegas e, na sequência, consiga acolher a/os demais, após vivenciar com intensidade a sua dor. É importante que nós tenhamos este espaço de humanidade. E, se as pessoas não compreenderem que nós somos humanas como elas, paciência. Também é possível que nós façamos as duas coisas ao mesmo tempo: que expressemos o nosso sentimento e acolhamos simultaneamente. Há quem se feche e não experiencie a dor. E quantas outras possibilidades pode haver que não me vêm à mente no momento. Encaminhamentos podem ser feitos enquanto vivenciamos a morte de um colega no ambiente de trabalho. É possível que percamos alguns sinais de dor em nossos colegas. Pode acontecer ainda que tenhamos ideias excelentes quando o momento de agir passar.

    Quando a finitude acontece com uma criança, as nossas crenças podem ser abaladas. Enquanto servidoras públicas, nós não podemos oferecer para a/os nossas/os estudantes uma justificativa que tenha cunho religioso. Isto porque a nossa instituição é proibida de se valer de argumentos desta ordem. Podemos afirmar que a vida contém a morte. Apesar de parecer simples, uma confusão pode se apresentar em um momento questionador por parte de si mesma/o ou por parte de um/a infante. A resposta pessoal surge de forma espontânea e invade o discurso. Esta vigilância precisa estar presente para evitar que incorramos em condutas ilegais considerando a laicidade do Estado, do qual somos agentes. Lidar com o insondável, o intransponível da morte, o limite que este fenômeno nos impõe faz com que a nossa empáfia de humanos – de sermos fortes, de conseguirmos nos adaptar a qualquer lugar, de estarmos presentes em todos os ambientes da superfície do planeta – seja menor, se restrinja. A finitude nos mostra que nós não somos deusa/es, que nós fazemos parte da Terra e que talvez não sejamos importantes. Nós não conseguimos perceber que nossa permanência se faz pela espécie a qual pertencemos. Passamos por muitas dificuldades durante nossa existência enquanto espécie, mas continuamos mesmo sendo tão frágeis. Eu repito este pensamento sobre a fragilidade humana. A fortaleza de nossa espécie passa pela alta adaptabilidade, mas nós não somos fortes o bastante para permanecermos individualmente.

    Encarar a finitude de um ente de nossa espécie induz a percepção da nossa delicadeza e provoca a humildade individual. Este substantivo tem o mesmo radical da palavra humano: humus, pó, terra. Impermanência. E ao mesmo tempo permanência porque tudo o que morre alimenta o que está vivo e o que viverá futuramente. Este pensamento é belo. Se nós conseguirmos alcançar esta beleza talvez nós consigamos superar a grande tristeza que a finitude nos impõe. Em momentos de acolhimento, famílias de estudantes indicaram suas reflexões acerca da valorização de suas crianças, de momentos de comunhão, a necessidade de reduzir o ritmo de vida tão agitado da modernidade para estar mais próximas de amiga/os, de vivenciar momentos simples sem pretensões, objetivos ou obrigações.

    Neste momento de dor, seria bom ter uma crença que pudesse justificar a perda de uma criança de sete anos. Uma linda menina doce, inteligente, gentil, amada, engraçada... e, mesmo que fosse peralta ou de comportamento difícil, de temperamento hostil, a dor que sua ausência nos provoca é indizível.

    Viver um luto neste momento me fez refletir sobre o risco que corremos durante o isolamento físico. No auge da pandemia de covid-19, nós não perdemos nenhuma criança, nenhuma colega de trabalho. Eu cheguei a pedir a uma família que não trouxesse o filho que estava no grupo de risco de morte por covid-19. Solicitei que mantivessem a criança em casa porque minha equipe não tinha condições emocionais de lidar com o sofrimento advindo da perda de uma criança naquele momento devido ao próprio abatimento que o isolamento nos impunha. Hoje, vivendo este luto, eu fico mais segura de ter feito a escolha certa por ter solicitado a conduta de resguardo àquela família.

    Nós estamos conseguindo passar por esta dor, tivemos muita sorte por estar em campanha salarial que promoveu uma paralisação dos trabalhos de toda a rede pública de ensino no dia subsequente ao falecimento de nossa estudante. Isto nos deu uma pequena pausa para nos prepararmos para o acolhimento da turma de nossa criança morta, nos permitiu um tempo para estarmos conosco mesmas e elaborarmos minimamente nossas emoções para suportarmos as expressões da/os colegas de turma da nossa estudante de forma íntegra.

    A elaboração de um falecimento é pessoal e intransferível. Ela precisa ser feita. Por isto é contraproducente fugirmos da emoção. É importante permitir que cada pessoa, incluindo as mais novas, faça a sua elaboração.

    O acolhimento que oferecemos intencionou a expressão de todos os indivíduos com máximo respeito a suas propensões pessoais: choro, a expressão mais básica, sem elaboração; fala, conforme sua convivência com a ausente; escrita, seja com elogios, com pedidos ou desejos, palavras ou frases; desenhos, considerando a intensidade de cada demonstração de afeto. Às crianças, foi oferecido um ritual muito simples sugerido por uma das mães de estudante da turma: a soltura de balões brancos no pátio externo da escola. Unimos a expressão das crianças através de um registro escrito ou desenhado amarrado aos fitilhos das bexigas. Às mães e pais, convidamos para uma roda de livre expressão nos horários de saída de aluna/os nos horários matutino e vespertino com participação espontânea. Às professoras, abrimos o espaço de escuta costumeiro em reunião semanal.

    Possibilitar a demonstração do pesar para a comunidade escolar foi o objetivo de nossas ações com cada seguimento. Desta maneira, oferecemos caminhos de elaboração para a coletividade envolvida como forma de atingir a pacificação emocional de modo breve e seguro.

    Devo acrescentar a fundamentação teórica possível ao se tratar de um assunto tão devastador como a morte e o luto. A psicologia hospitalar tem tratado destes temas posto sua proximidade com os momentos finais. O luto tem fases com sequência mais ou menos fixa. Podemos auxiliar nossa comunidade indicando emoções que se sucedem em relação à perda sentida de forma a evitar sustos no manejo das emoções.

    Este tema lúgubre precisa ser estudado com mais atenção por psicóloga/os escolares porque temos vivido uma epidemia de suicídio desde a segunda década deste século. Tal fenômeno tem sido observado em nossas escolas de ensino médio principalmente. A quantidade de casos é tamanha que a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal disponibiliza protocolos a serem observados por e com escolas que apresentem tais casos. Estas ações são denominadas de posvenção ao suicídio.

    Também é necessário cuidado para não espetacularizar o fenômeno final. Como estamos enfrentando uma epidemia de autoextermínio, qualquer vantagem ou exposição elogiosa pode se tornar um incentivo ao ato extremo. Adolescentes tendem a agir de forma muito impulsiva e costumam ter autoestima rebaixada devido à transformação corporal e à supervalorização do grupo de pertencimento.

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